A tempestade começou por volta das três da manhã.
Relâmpagos cortavam o céu como presságios. Do meu quarto, vi as árvores dançarem ao vento como prisioneiros sendo arrastados por correntes invisíveis. Mas o que me tirou o sono não foi o barulho lá fora.
Foi o silêncio dentro.
Elyan.
Desde que entrou naquela casa, ele ainda não tinha gritado, reclamado, nem sequer se irritado. Mas o silêncio dele gritava dentro de mim. Fazia mais barulho que qualquer trovão.
Levantei-me, vesti o robe de seda vinho e desci as escadas descalça. O chão gelado sob os pés não me incomodava. Eu já estava gelada por dentro.
No corredor principal, senti. O cheiro dele. A presença.
O quarto de hóspedes estava com a porta entreaberta. Hesitei. Eu mandara colocar uma trava por dentro. Só ele podia abri-la.
Empurrei devagar. A luz estava apagada, mas a janela estava aberta. A cortina dançava feito alma solta.
E ele estava lá.
Sentado no chão, de costas para a porta. Nu da cintura para cima. A pele úmida de suor ou chuva — não sabia dizer. O cabelo grudado na testa. Os músculos tensos.
Ele sussurrava algo. Sozinho. Quase como uma prece. Ou um código.
— Elyan?
Nada.
Dei mais um passo. O piso rangeu. Ele virou o rosto em minha direção como um animal em alerta. Por um instante, vi ódio nos olhos dele. Dor crua. E medo. Medo real. De si mesmo, talvez.
— É só um pesadelo? — perguntei, mais suave do que queria.
— Não. — respondeu, rouco. — É só... a memória tentando escapar. E o corpo segurando.
Sentei no chão, a uns dois metros de distância. O cheiro da noite molhada entrava pela janela. O silêncio entre nós estava grávido de tudo o que não sabíamos dizer.
— Onde você aprendeu a matar?
Ele riu, baixo. Um riso cansado.
— No mesmo lugar onde aprendi a fingir que não dói.
— E dói?
— Quando você não sente mais dor...
— Você está morto?— Você virou o próprio veneno.
Fiquei olhando para ele. E ele, para o nada. Parecíamos duas peças de um jogo antigo, encontradas em tabuleiros diferentes.
Eu podia dominá-lo com ordens. Mas não com presença.— Você devia dormir — disse, levantando-me.
— E você devia parar de tentar me entender.
— Tarde demais.
Antes de sair, ele me chamou.
— Isabella.
Era a primeira vez que ele dizia meu nome. E dito por ele, soou como um segredo.
— Você é mais perigosa que qualquer um que já me prendeu.
Fiquei sem resposta. E isso, para mim, era raro.
Apenas saí. Mas por dentro, algo tremia. ---Na manhã seguinte, o caos chegou com um envelope.
O mordomo o entregou durante o café. Era pesado. Sem remetente. Apenas meu nome escrito à mão, com tinta preta e traços fortes demais para serem casuais.
Dentro, havia uma foto.
Elyan. Em uniforme militar. Ao fundo, um campo em chamas. E uma assinatura: Capitão Elyan Vargas.Vargas?
O nome bateu como uma explosão na minha mente. Vargas era um nome proibido nas famílias da elite de Valdora. Tinha sido envolvido em rebeliões, tráfico de armamento e desaparecimentos “acidentais” de inimigos políticos.
Se ele era um Vargas... então o leilão não era um acidente.Eu tinha comprado um inimigo.
Ou um isco.
Subi correndo, atravessei o corredor como uma bala.
Arrombei a porta dele.Estava de pé, à frente do espelho, terminando de vestir uma camisa branca, como se tudo estivesse sob controle. Como se ele soubesse.
— Então... Capitão Vargas?
Ele não se assustou.
— Demorou mais do que imaginei.
Joguei a foto sobre a cama.
— Você armou isso?
— Eu fui entregue, não armei. Se alguém me pôs ali, foi por medo do que sei. Ou do que posso contar.
— E por que não contou ainda?
— Porque você não perguntou direito.
A raiva subiu. Aquele homem me desmontava sem tocar.
Aproximei-me, invadindo seu espaço.— Quem é você, de verdade?
— A mesma pergunta vale pra você.
Fiquei a centímetros do rosto dele. A tensão era elétrica. Quase insuportável.
Mas eu não cederia.— Aqui, eu comando.
— E por quanto tempo isso te faz dormir tranquila?
Meus olhos desceram. A respiração dele era ritmada, controlada.
Mas o olhar... não. Ali, havia tempestade.— Se está aqui para me destruir, tente.
— Se está aqui por vingança, ataque.— Mas se está aqui porque não tem mais pra onde ir...
— Então sente-se, Capitão. E aprenda a sobreviver.Ele inclinou o rosto.
O sussurro veio com cheiro de fogo:— Eu não sobrevivo, Isabella. Eu renasço.
---Naquela noite, choveu de novo.
Mas, dessa vez, o trovão estava dentro da casa.