A manhã chegou em Valdora sem anunciar-se com delicadeza.
O sol queimava como se quisesse castigar a ilha inteira por segredos acumulados demais. Da varanda do meu quarto, eu observava os muros altos da propriedade, como se aquilo fosse suficiente para manter o mundo — e ele — do lado de fora.Mas ele já estava dentro.
Uma funcionária me avisou que o “hóspede” estava no jardim de inverno. Descalço. Em silêncio. Apenas olhando as flores, como se estivesse à espera de algo.
Ou de alguém.
Desci devagar. Cada passo meu parecia mais alto do que o anterior. Eu não gostava de me sentir observada — e com Elyan, a sensação era constante, mesmo quando ele não estava olhando. Era como se ele lesse minhas hesitações antes mesmo de eu pensá-las.
Encontrei-o sentado no banco de pedra, entre as roseiras. Os espinhos eram do mesmo tom que o olhar dele: firmes, disfarçados sob beleza.
— Está à vontade demais para alguém que foi comprado — comentei, aproximando-me.
Ele não olhou para mim. Passou os dedos por uma flor fechada, como se tivesse pena dela.
— Está à vontade demais para alguém que me comprou — respondeu, calmo.Fiquei de pé diante dele. A luz do sol batia em sua pele morena, revelando marcas antigas. Não cicatrizes comuns. Eram... mapas. Histórias. Territórios vencidos.
E feridas que não curavam com dinheiro.— Você tem ideia de onde está? — perguntei.
— Numa jaula dourada. Bonita, mas ainda assim, uma jaula.
— Você não está preso.
— Não fisicamente.
Silêncio.
Fiquei ali, imóvel, tentando não ceder à provocação. Mas ele não provocava como os outros homens. Não usava palavras como armas. Usava o silêncio como espelho.
— Vamos estabelecer regras — disse, retomando o controle da conversa.
— Você terá um quarto, roupas, refeições. Pode andar livre pela casa, mas não sai dela sem permissão. — Perfeito — respondeu, finalmente me encarando. — Só falta me dizer o que quer de mim.— Obediência.
— Isso não se compra.
— Tudo se compra, Elyan. Só depende do preço.
Ele levantou-se, lentamente. Sua altura me fez recuar meio passo sem perceber. Mas não o deixei notar. Ou achei que não deixei.
— E se o preço for sua própria alma, Isabella? — ele sussurrou. — Vai continuar comprando mesmo assim?
Aquela pergunta não era só dele. Era minha também, mas guardada em algum canto escuro da memória.
Mudei de assunto.
— Você tem formação? Profissão?
— Soldado. — De guerra?— De várias.
A resposta não era literal. Ou era?
Algo nele me dizia que nem o inferno teria conseguido queimá-lo inteiro.
---Mais tarde, pedi ao mordomo que lhe levasse roupas. Ele recusou. Disse que preferia escolher as próprias peças. Mesmo isso, até isso, era uma forma de resistência. De manter o controle que eu julgava ter comprado.
À noite, preparei um jantar no salão menor da mansão. Luz baixa, música clássica ao fundo, dois pratos servidos com perfeição por mãos treinadas.
Ele entrou como se aquilo fosse normal. Usava preto. Uma camisa simples, aberta no colarinho. O cabelo agora penteado para trás revelava o corte preciso da mandíbula. Mas era nos olhos que morava o abismo.
— Está tentando seduzir ou interrogar? — ele perguntou, ao se sentar.
— Quem disse que não posso fazer os dois?
Sorrimos. Um sorriso cheio de armadilhas.
O jantar seguiu com perguntas. Algumas diretas, outras veladas. Eu queria entender. Controlar. Desvendar.
Mas Elyan não era um homem de se decifrar em jantares.
— Você já matou alguém? — perguntei, no final.
Ele me olhou. Por tempo demais.
— Isso é uma pergunta de quem quer saber a verdade... ou de quem quer se sentir segura?
— As duas coisas.
Ele se inclinou na cadeira, cruzando os dedos.
— Já.
— Muitas vezes?— Algumas suficientes para me fazer esquecer nomes.
— E sentiu culpa?
— Senti que eles não voltaram.
As respostas vinham secas, mas sem crueldade. Como fatos que a vida ensinou a engolir sem água.
— Você vai tentar fugir? — disparei.
Ele deu um leve sorriso, sem mostrar os dentes.
— Por que fugiria de um castelo, quando posso conquistar a rainha?
A frase foi uma navalha de prata. Fina. Brilhante. Precisa.
Levantei-me. Ele também.
— Boa noite, Elyan.
— Sonhe comigo — disse ele, já virando de costas.
Aquilo me arrepiou. Pela ousadia, sim. Mas mais ainda pelo fato de que, talvez, eu sonharia mesmo.
---Naquela madrugada, ouvi passos.
Me levantei em silêncio, peguei a arma escondida sob o criado-mudo e abri a porta devagar.O corredor estava vazio.
Mas o cheiro... estava lá.
Algo entre fumaça, terra molhada e flor.Ele tinha passado por ali.
Mas não entrou. Ainda.