Capítulo 2

O chão da cozinha era gelado sob as meias. Madeleine encostou o quadril na pia e segurou a caneca com as duas mãos, como se o calor do chá pudesse alcançar partes dela que o inverno já tinha tocado. O silêncio da casa era tão denso quanto a neve do lado de fora. Havia um tipo específico de solidão que só acontecia quando ninguém esperava mais nada de você.

Ela girou o punho, soltando devagar a dor insistente que nascia entre os ossos — ultimamente, qualquer gesto demorava mais. Na primeira noite, dormira vestida. A segunda tinha sido levemente mais confortável. Agora era a terceira, e o som do vento zunindo pelas frestas já era quase familiar.

Ela olhou para a pequena estufa elétrica, no canto da sala, e depois para a janela embaçada que dava para o fiorde. A paisagem parecia uma pintura sem moldura. Infinita, fria, azulada. Clara passaria para buscá-la às sete e meia.

Fez as contas de novo.

Cinco dias desde que aterrissara em Tromsø. Três desde que colocara os pés na casa. Dois desde que tinha chorado pela última vez.

E quatro meses desde que perdera a guarda de Beatrice.

A caneca estremeceu em suas mãos. Madeleine fechou os olhos e se obrigou a respirar.

Contar.

Cinco… quatro… três…

Ela ainda ouvia os gritos às vezes. Os próprios.

"Eu não consigo! Eu não sei o que ela quer! Eu não sirvo pra isso!"

A sala branca. O assistente social. A voz da médica como quem recita uma sentença.

"Ela não está segura com você nesse estado."

As palavras pareciam ecoar agora no vapor que saía do chá.

Quando a campainha tocou, foi como se o mundo real lembrasse que ela existia.

Madeleine abriu a porta. Clara estava com o capuz abaixado, bochechas vermelhas do vento e um sorriso discreto.

— Dormiu bem? — perguntou, sem forçar gentileza.

— Bem o suficiente — Madeleine respondeu, vestindo o casaco que já deixara pronto sobre a cadeira e calçou as botas.

Clara entregou uma sacola com pães e duas garrafas térmicas.

— Café norueguês. Forte e quente. Vai ajudar.

Madeleine pegou, surpresa. Não por Clara ter trazido, mas por ter se lembrado.

— Obrigada. — Ela hesitou. — O bilhete… você mencionou o vizinho. Ele é o proprietário?

Clara assentiu.

— Anders. Viúvo. Vive aqui desde sempre. O filho mora com ele, Emil. Tem nove anos.

Madeleine se perguntou qual era o nome da mulher que não estava mais ali. A mãe de Emil.

Como se desaparecimentos silenciosos formassem uma linha entre elas.

No carro, Clara ligou o aquecedor. O cheiro de café fresco preenchia o ar.

— Você conhecia o arquiteto anterior? — perguntou Madeleine, tentando reorganizar os pensamentos para o trabalho.

— Um pouco. Alemão. Muito técnico, pouco prático. O projeto não andava. Quando sugeri seu nome ao conselho, não achei que aceitariam.

— Por causa da minha condição.

— Por causa da sua fama. — Clara olhou rápido para ela. — A condição foi só um adendo. Eles queriam a Madeleine Foster. Você ainda é um nome forte.

Madeleine não respondeu.

Ela não sabia mais se queria ser um nome forte.

O canteiro era uma clareira de aço e gelo entre duas colinas. O hotel ártico se erguia como uma promessa estranha no meio do nada — curvas inspiradas nas baleias, concreto curvo, vidro polarizado. As bases já estavam prontas. O resto era ruído.

Madeleine caminhou em silêncio com Clara. Homens de capacete passavam carregando blocos e ferramentas. Um deles a cumprimentou em norueguês. Ela sorriu timidamente e respondeu em inglês hesitante.

O idioma escorregava da sua boca como se ela tivesse esquecido a própria voz.

Talvez tivesse mesmo.

Depois de horas discutindo o encanamento subterrâneo e a disposição das colunas de sustentação, Clara se afastou para atender uma ligação. Madeleine ficou sozinha com o papel do projeto, o lápis e uma prancheta apoiada numa caixa de ferramentas.

Ela desenhou linhas que se curvavam como ondas. Corrigiu o desenho do acesso lateral. Depois, sem pensar, rabiscou uma pequena porta… e ao lado, uma criança de mãos dadas com uma mulher sem rosto.

Ela suspirou e rasgou a folha.

— Não é ruim.

A voz veio de trás. Grave, baixa, como um trovão que não chega a assustar.

Ela piscou.

— Desculpe?

Ele apontou para o pedaço de papel rasgado.

— Desenhar. Ajuda. Mesmo quando a gente não sabe o que quer dizer com aquilo.

Madeleine levou alguns segundos para registrar a presença dele. Anders estava parado a poucos metros, apoiado em uma viga lateral, observando sem pressa. Não usava capacete, nem crachá. Estava com o casaco fechado até o pescoço e as botas ainda cobertas de neve.

Ela não o vira chegar. Talvez estivesse só passando. Ou talvez observando algo mais do que o projeto.

— Você está... aqui a trabalho? — perguntou, meio sem jeito, tentando reorganizar a cena.

— Não. Só vim deixar umas ferramentas com um conhecido. — Ele olhou para o canteiro como quem conhecia bem os caminhos, mas não pertencia mais a eles.

Ela assentiu devagar, e então arriscou:

— É seu o chalé então?

Anders voltou o olhar para ela. Assentiu com um pequeno movimento de cabeça.

— Era da minha família. Reformei para alugar. A vila não é exatamente cheia de opções.

— É confortável. — Madeleine fez uma pausa. — Clara me disse que você vive ali ao lado com seu filho.

Anders não respondeu de imediato. Olhou para o chão, depois para o céu encoberto.

— Sim. Emil gosta do mar. A escola é perto. E aqui é silencioso. Silêncio ajuda.

Ela entendeu, mesmo sem querer. O silêncio não era ausência de ruído. Era ausência de perguntas.

Anders fez menção de sair, mas hesitou.

— Ele gosta de desenhar. Barcos, bichos. Qualquer coisa que flutue.

— Parece com você?

— Mais com ela. — A frase saiu como uma nuvem curta no ar. Ele não explicou quem era “ela”. E não precisava.

Madeleine quis perguntar o nome. Mas se conteve. Em vez disso, disse:

— Minha filha prefere cores. Quatro anos. Beatrice.

O nome ficou suspenso entre eles por um segundo.

— Gosta de desenhar o sol. Mesmo quando não está.

Anders olhou para ela como quem reconhece alguma coisa antiga.

— Ela está aqui?

Madeleine negou com a cabeça.

— Ainda não.

Ele não perguntou mais nada. Apenas assentiu, como quem entendia que certos pedaços a gente só entrega aos poucos.

Então ele seguiu caminho.

Madeleine ficou ali, com o vento, o papel rasgado e uma sensação de que alguma coisa tinha começado — embora ninguém tivesse realmente dito nada.

Talvez fosse isso que o inverno fazia com as pessoas.

Descongelava aos poucos.

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