A água do chuveiro nunca era quente o suficiente.
Madeleine vestiu o casaco ainda com o cabelo úmido, prendeu-o num coque frouxo e engoliu a última colher de mingau que Clara deixara pronto na noite anterior. Não sabia por que Clara fazia isso — se era gentileza ou hábito. Mas não tinha forças para recusar cuidado, por mais silencioso que fosse.
Na varanda, o ar congelado bateu no rosto como uma mão aberta. O céu estava mais limpo do que nos dias anteriores, e ela podia ver, pela primeira vez, a extensão do fiorde brilhando à distância. Era belo. Imponente. Um lugar em que tudo parecia poder acontecer — ou nada.
No caminho para o canteiro, Clara falava sobre um fornecedor de vidro térmico da Finlândia que atrasaria as entregas por conta de uma tempestade no Báltico. Madeleine escutava, anotava, respondia em monossílabos. Às vezes, uma frase completa escapava.
O corpo estava ali. A mente, também. Mas era como se uma parte essencial tivesse ficado em outro lugar.
Em Londres.
Num quarto lilás com adesivos nas paredes e brinquedos alinhados por cor. Numa caminha vazia.— Esse fim de semana temos a primeira visita do conselho — disse Clara, interrompendo o devaneio. — Nada formal ainda, mas convém preparar uma apresentação visual.
Madeleine assentiu.
— Eu cuido disso. Posso montar uma maquete digital até sexta.
Clara lançou um olhar de aprovação contida. Era o máximo de elogio que ela oferecia. E isso era bom.
O dia passou entre pranchetas, medições e ajustes no plano de drenagem. Madeleine se manteve ocupada o suficiente para esquecer a si mesma — o que, naquela fase, era uma vitória.
Já anoitecia quando ela voltou a pé para o chalé. O céu escurecia cedo, mesmo que ainda fosse fim de tarde. Na entrada, parou ao ouvir vozes vindas do outro lado da cerca de madeira que separava sua casa da vizinha.
— Eu sei que não é a mesma coisa. — A voz era masculina. Rígida.
— Mas você tem que entender… ela não vai voltar agora.Madeleine congelou.
Era Anders. Estava agachado, tentando falar com Emil, que, de costas para ela, desenhava algo no chão com um galho seco.
— Não quero outra madrasta — o menino respondeu, num sussurro ríspido, quase infantil demais para o peso da palavra.
Madeleine deu um passo para trás. Não queria ouvir. Não queria invadir. Mas era tarde demais.
— Eu também não. — A voz de Anders baixou. — Mas não é disso que estou falando.
Houve silêncio.
— A escola disse que você tem evitado os colegas. Que se recusa a falar sobre ela.
Emil não respondeu.
— Você pode sentir falta dela. Pode até ficar bravo. Mas não pode se calar com o mundo inteiro.
Anders passou a mão pelos cabelos. Madeleine viu o gesto e reconheceu algo. Era o gesto de quem estava tentando ser forte sem saber como.
Ela entrou no chalé sem fazer barulho. Largou a bolsa no sofá, acendeu a luz baixa da sala e se sentou à mesa com o notebook aberto. Os olhos ficaram fixos na tela, mas tudo o que ela conseguia pensar era em Emil desenhando em silêncio. E em Beatrice, que agora provavelmente dormia do outro lado do Canal da Mancha.
Era estranho pensar que duas crianças tão pequenas pudessem carregar tanto.
Na manhã seguinte, Madeleine acordou antes do despertador. O céu ainda estava escuro, mas a casa parecia respirar mais lentamente. Passou água no rosto, vestiu-se com roupas térmicas e, sem saber por que, colocou na mochila o pequeno estojo de aquarela que Beatrice havia deixado em sua bolsa meses antes — rosa, com unicórnios e manchas secas de tinta.
Caminhou até o canteiro sozinha. Clara avisara por mensagem que chegaria mais tarde, por conta de uma reunião com o engenheiro local.
Enquanto aguardava a equipe, Madeleine organizou papéis na mesa improvisada e começou a revisar os esboços. Tinha acabado de ajustar a escala da fachada quando ouviu passos se aproximando.
Virou-se. Anders estava ali — e dessa vez, com Emil ao lado.
— Ele insistiu em vir me ajudar antes da escola — explicou Anders, com um tom que não soava nem irritado nem entusiasmado. Apenas… resignado.
— Está tudo bem — disse Madeleine. — Contanto que ele não opere nenhuma serra elétrica.
Anders esboçou um meio sorriso. Emil se aproximou sem dizer nada, carregando seu caderno de desenho como sempre. Madeleine o observou sentar-se no canto mais seco da madeira e começar a rabiscar. Barcos de novo. E um prédio.
— Isso é o hotel? — ela perguntou, apontando.
Ele assentiu.
— A entrada. Só que mais bonita do que a sua.
Ela ergueu uma sobrancelha.
— Está me desafiando?
Ele deu de ombros.
— Só acho que pode ter uma ponte de vidro. E uma escada em espiral.
Madeleine se abaixou ao lado dele e abriu sua mochila. Tirou o estojo cor-de-rosa e o colocou entre eles.
— Posso te emprestar isso… mas só se você prometer devolver com uma ponte e uma escada.
Emil olhou para ela, depois para Anders, que observava a cena com expressão neutra.
— É de verdade?
— Era da minha filha — Madeleine respondeu, sem hesitar. — Ela gosta de pintar o sol. Mesmo quando ele não está no céu.
Emil não respondeu. Mas abriu o estojo com cuidado.
Anders se aproximou devagar.
— Você não precisa…
— Eu sei — interrompeu Madeleine. — Mas quero.
Os olhos dele encontraram os dela por um segundo. E pela primeira vez, ele pareceu ver não só a arquiteta, ou a inquilina, ou a mulher que ainda estava tentando não desmoronar. Mas alguém que também estava tentando ser alguma coisa parecida com inteira.
Mais tarde, já de volta ao chalé, Madeleine ficou olhando para o pequeno traço amarelo que Emil havia deixado na tampa do estojo. Uma espiral. Talvez um sol. Talvez só tinta.
Ela pensou em Beatrice.
E pela primeira vez em muito tempo, não chorou.