O mundo inteiro parecia ter sido apagado com uma borracha gelada.
Madeleine encostou a testa na janela arredondada do avião e observou o branco absoluto que se espalhava por Tromsø. Não era uma cidade — era uma lembrança mal formada. Casinhas minúsculas enterradas em neve, fiordes congelados, um céu que mal se dava ao trabalho de clarear. A única cor visível era o vermelho do casaco de um funcionário de pista, deslizando como um ponto perdido no silêncio glacial da pista de pouso.
Ela não sabia se queria chorar ou dormir.
Mas não chorava mais. Tinha secado por dentro semanas atrás, quando a assistente social fechou a pasta com o relatório e disse, com uma gentileza quase cruel, que “era temporário, para o bem da criança”. Fazia exatamente noventa e dois dias desde que ouvira pela última vez o som do riso da filha em casa. O vazio ecoava com mais força do que o som.
Assim que o avião tocou o solo, ela apertou os dedos ao redor da alça de couro da bolsa onde guardava os desenhos do novo projeto — um hotel ártico no meio de lugar nenhum. O último convite profissional antes que a imprensa descobrisse tudo. A última chance antes de desaparecer de vez.
“Desceremos em instantes. A temperatura externa é de menos quatorze graus. Bem-vindos a Tromsø.” A voz da aeromoça era animada demais para a paisagem.
Madeleine pegou a mala de mão e seguiu com o fluxo silencioso de passageiros pela pequena ponte que levava ao terminal. A brisa que passou pelas frestas da porta automática já era suficiente para que o corpo estremecesse.
Ela vestiu o casaco grosso que comprara em Oslo — preto, pesado, quase militar — e saiu para enfrentar o mundo onde o ar parecia doer.
O táxi estava esperando, um carro quadrado e antigo, com cheiro de couro e aquecedor funcionando no máximo. O motorista era um senhor de olhar gentil que arriscou um inglês correto ao perguntar o destino.
“Strandveien, 142. Chalé alugado pela empresa.”
Ele assentiu. E então, por um longo tempo, não disseram mais nada.
A estrada parecia uma estrada para o fim do mundo. O céu cinzento se misturava à neve acumulada nos galhos das árvores, e só os postes com luz amarelada quebravam a uniformidade do branco. Tromsø parecia engolida pela própria solidão — um lugar onde ninguém encontraria ninguém.
Perfeito, pensou.
Ela tentou se distrair com a paisagem, mas tudo o que via eram lembranças. Beatrice correndo com o cabelo solto, rindo no jardim da antiga casa em Londres. A frustração no rosto do ex-marido. A forma como o chão se abriu dentro dela e não fechou mais.
A depressão pós-parto era como um rio gelado: silencioso, mas implacável. Você afundava antes de perceber que tinha entrado.
O chalé era menor do que ela esperava. Uma construção de madeira escura, com janelas grandes e uma varanda coberta por gelo. Por dentro, tudo limpo e funcional. Minimalista. Como se alguém tivesse passado ali só para arrumar as coisas e desaparecido de volta na floresta.
Madeleine deixou a mala no canto da sala e tirou as luvas. Os dedos demoraram segundos demais para se moverem. Ela olhou ao redor. Uma cozinha embutida. Um sofá. Um aquecedor antigo zumbindo. Uma estante com livros em norueguês. Um quarto com cama de casal, coberta por um edredom azul-marinho. Nele, sobre o travesseiro, um bilhete:
“Bem-vinda, Madeleine. A chave estava com o proprietário, já deixei tudo pronto. Nos encontramos amanhã cedo no canteiro. Qualquer coisa, o proprietário e vizinho ao lado — Anders — costuma ser gentil. – Clara Jensen”
Ela encostou o bilhete na parede e ficou ali, parada, como se as palavras tivessem o poder de aquecê-la.
Mas não tinham.
Pegou o celular. Nenhuma mensagem. Nenhuma notificação. O advogado ainda estava tentando negociar a próxima visita com a filha, e ela tinha medo de insistir demais e parecer instável. Qualquer passo em falso poderia significar mais semanas de silêncio.
Sentou-se no chão da sala, tirou os sapatos, puxou os joelhos contra o peito e respirou fundo.
Ali, cercada de nada, com neve até os joelhos e os ombros curvados, ela enfim aceitou: não sabia quem era mais.
No dia seguinte, o projeto começou.
Ela foi recebida no escritório pequeno da empresa norueguesa responsável pelo hotel. Três pessoas, uma mesa longa, café amargo demais e mapas topográficos pendurados nas paredes. Ninguém comentou nada sobre sua fama, seus prêmios, seu colapso. Não era bajulação — era alívio. Ser vista apenas como profissional. Como alguém funcional.
O terreno onde o hotel seria erguido ficava perto do mar, entre duas colinas que se cobriam de gelo até março. Era arriscado, mas possível. Madeleine já via, na cabeça, as linhas da estrutura. O vidro resistente às baixas temperaturas. A madeira clara local. A luz natural entrando em ângulos calculados. Ela falava, e os outros escutavam. A voz voltava ao corpo.
E então, quando estava saindo da sede da empresa, sentiu algo puxando sua manga.
Era um menino.
Cabelos claros, quase brancos sob o sol. Bochechas coradas pelo frio. Uns nove anos, talvez. Ele a olhava com curiosidade silenciosa. Nas mãos, segurava um caderno de desenho aberto — e, nele, um barco, com detalhes minuciosos nas cordas e nas velas.
“Desculpa,” disse uma voz masculina atrás dela, num inglês com sotaque forte. “Ele achou que você era... alguém da escola.”
Madeleine virou-se.
Anders.
O bilhete da Clara agora tinha rosto — o vizinho e proprietário. Alto, barba curta, olhos cinzentos como a paisagem. O tipo de homem que parecia esculpido pela própria geada.
“Ele desenha?” Madeleine perguntou, apontando para o caderno.
“Todo dia. Barcos, em geral. Às vezes baleias. Ele se chama Emil.”
O menino sorriu de leve. Madeleine retribuiu, um pouco sem jeito.
“Você é a arquiteta, não é?” Anders perguntou.
“Sim.”
Ele assentiu. “Bom. O chalé já estava precisando de vida.”
E então os dois ficaram ali, em silêncio. O tipo de silêncio que não machuca. Apenas… existe.
E pela primeira vez desde Londres, Madeleine pensou que talvez, só talvez, esse inverno não fosse o último.