4: Luna Castilho

"Ele acha que me possui, mas ainda não entendeu: no escuro onde ele tenta me prender, sou eu quem enxerga melhor. Sou eu quem domina." — Luna Castilho

🖤

O dia da minha penitência chegou. Hoje deixarei de ser a filha imaculada e frágil de Hernán Castilho para me tornar a marionete do poderoso Fernando Torrenegro.

— Pobre coitado. Se ele imagina que poderá me dominar está muito enganado. Estou sendo jogada na fogueira contra a minha vontade, mas pode ter certeza, que eu não queimarei sozinha. — murmuro enquanto a criada fecha o zíper do meu vestido.

Cuidadosamente sou guiada até o local onde aconteceria a cerimônia: o jardim. O aroma das flores e das folhas definiam aquele lugar. Enquanto eu caminhava uma música instrumental suave tocava ao fundo. Mas não se engane, tudo não passava de uma encenação, e mesmo não enxergando eu sabia que ao meu redor haviam fotógrafos e jornalistas registrando a grande notícia do ano: o casamento entre Castilho e Torrenegro.

A cerimônia foi rápida, fria e mecânica. E quando o juiz disse: — Pode beijar a noiva, um alerta acendeu em mim.

"Ele não vai ter coragem." — pensei.

Mas, para minha surpresa, Fernando me beijou.

Foi rápido e calculado. Como se fosse apenas um selo burocrático, uma assinatura selada com pele e sal. Mas eu senti o tremor. Um milésimo de segundo em que os lábios dele hesitaram sobre os meus. Uma falha ínfima na perfeição do controle. Aquela pausa que ninguém notaria — exceto eu. Porque eu não enxergo o mundo com os olhos. Eu o sinto com o corpo inteiro.

E naquele milésimo, Fernando Torrenegro não foi apenas o mafioso cruel, o nome que assombra os corredores do poder e da vingança. Ele foi homem de carne, sangue… e medo.

Sim, medo.

Mas não de mim. Nunca de mim. Homens como ele não temem o inimigo visível. O que o assusta é aquilo que carrega dentro do peito e não consegue conter. O que lateja quando menos espera. O que arde quando a lógica falha.

E naquele beijo contido, eu percebi: Fernando teme sentir.

E isso, ironicamente, me deu poder.

Fiquei imóvel. Não por submissão, jamais. Mas para escutá-lo.

O silêncio de Fernando é um campo minado carregado e denso, quase insuportável para quem não sabe respirar entre as ausências. Há raiva nos gestos que ele reprime e nas palavras que escolhe engolir. Há tensão na forma como se movimenta, como se cada passo fosse um cálculo para não explodir por dentro.

E há desejo.

Não aquele desejo sujo e imediato dos homens que me rodearam durante a vida — lobos que fingiam gentileza para depois devorar. Não.

O dele é outro tipo. É o desejo que vem acorrentado, sufocado e envergonhado de existir. É o tipo que grita calado e queima sem mostrar a chama.

Quando ficamos sozinhos no quarto, o ar mudou e a casa prendeu a respiração. Como se até as paredes soubessem que o que se iniciava ali não era um casamento — era uma guerra silenciosa entre dois mundos que jamais deveriam ter se tocado.

Eu me sentei na beira da cama, o vestido de noiva ainda grudado à pele como uma segunda camada de silêncio. Era pesado, sufocante. Um símbolo da prisão em que me jogaram. Mas eu não sou prisioneira. Eu sou estrategista. Deixei que ele tomasse a dianteira, mas perguntei o que precisava ser perguntado:

— Você vai me despir como parte da punição ou da cerimônia?

Minha voz saiu firme. Sem tremor. Sem doçura.

Era uma lâmina embainhada em palavras.

E eu senti o baque. Ele não esperava. Homens como Fernando estão acostumados a dobrar mulheres. A ver submissão nos olhos, até mesmo quando disfarçada de orgulho. Mas eu não ofereço doçura. Ofereço espelhos. E os espelhos cegam quem não suporta a própria imagem.

Ele hesitou. E nesse intervalo entre minha pergunta e sua resposta, algo nele rachou.

Eu ouvi o estalo.

— Não vou te tocar hoje — ele disse, por fim. — Ainda não.

Aquela pequena concessão não era um gesto de gentileza. Era uma batalha vencida dentro dele.

Senti o alívio escorrer pelas costelas como um suspiro libertado. Mas não era só por me manter intacta. Era porque, naquele instante, Fernando escolheu não ser o monstro que tantos dizem que ele é. E isso me confundiu. Porque parte de mim queria odiá-lo. Queria marcá-lo com o mesmo nojo com que fui marcada por homens menores, de alma apodrecida. Mas Fernando… ele não me repugna. Ele me intriga. Ele fugiu de mim. Não literalmente — mas energeticamente. Como se eu fosse a única ameaça que ele não sabia como controlar. E essa fuga doeu em algum lugar que eu ainda não nomeio.

Quando ele saiu, o quarto voltou a respirar e eu me deitei com o vestido ainda no corpo como um cadáver elegante de uma festa que nunca começou.

Passei as mãos pela colcha. Senti a textura firme e luxuosa. Deslizei os dedos pelas bordas do criado-mudo e pela madeira que guardava histórias que meus olhos nunca veriam, mas que minhas mãos liam como se fossem braile emocional. O som da lâmpada trêmula. O perfume do jasmin envelhecendo no vaso. O tic-tac sutil de um relógio de parede. Tudo compunha a sinfonia da solidão. E eu a conheço bem.

Não é o escuro que me assusta. É a ausência de verdade.

E naquele quarto, a única verdade era o nome que ecoava como tambor dentro do meu peito: Fernando.

Cada batida do meu coração soava como sua presença. Como se, mesmo fora dali, ele ainda estivesse impregnado em mim. Como se o beijo rápido e seco tivesse deixado um traço invisível que queimava sob a pele.

Eu me odeio por isso? Não.

Eu apenas registro.

Porque odiar seria dar poder demais a uma emoção que ainda não entendo.

Fernando é feito de sombras. E as sombras… ah, elas só existem por causa da luz. Por mais mínima que seja, a luz está lá. E eu quero encontrá-la. Porque, se conseguir, talvez eu descubra o que o assombra tanto.

Será culpa?

Será arrependimento?

Será amor afogado no pântano da vingança?

Ele me quer como símbolo. Como moeda. Como lembrança viva do homem que ele odeia: meu pai.

Mas Fernando esqueceu uma coisa essencial: símbolos têm poder e moedas têm valor. E lembranças… bem, elas corroem mais do que qualquer bala.

Sou a filha do inimigo e a mulher que ele pretende usar. E ao mesmo tempo, sou a única que consegue ver o que ninguém mais vê. Não com os olhos. Mas com a alma.

Fernando Torrenegro carrega morte nos passos, sim. Mas também dor. Uma dor tão antiga, tão entranhada e profunda, que ele se esqueceu de onde ela começou. E talvez — só talvez — eu consiga decifrar.

Mas isso não é salvação. É guerra.

Porque eu também tenho minhas cicatrizes. Meu corpo pode não ter feridas visíveis, mas a cegueira me moldou profundamente. Aprendi a caminhar em becos escuros, onde a vida tenta roubar seu nome e sua dignidade. Aprendi a ouvir os sons que os outros ignoram, interpretar silêncios como se fossem mapas e usar o medo como guia. E é com essa força que vou enfrentá-lo.

Não com gritos, silêncio ou lágrimas, mas com precisão.

Se Fernando Torrenegro quer jogar, ele vai aprender que no escuro... sou eu quem reina, caço e venço

Amanhã, perante a imprensa serei oficialmente sua esposa, mas o que ele ainda não percebeu é que esse papel pode ser a chave do fim ou o estopim de uma nova guerra.

E eu?

Eu estou pronta.

Porque o que ele esqueceu é que até as rosas têm espinhos. E algumas, quando sangram… matam.

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