Capítulo 7

A sala de emergência era um campo de guerra.

Crianças feridas, gritos, cheiro de sangue misturado ao de desinfetante, e um zumbido no fundo da mente que só se intensificava a cada segundo. Médicos corriam, enfermeiros gritavam instruções, mães agarravam seus filhos como se pudessem impedir a morte com as próprias mãos.

Minhas pernas se moviam, mas minha mente... parada. Congelada.

— Estela! — a voz conhecida me puxou de volta.

Catarina.

Minha amiga, meu chão. O rosto dela estava manchado de suor, o cabelo preso de qualquer jeito, e ainda assim, havia nos olhos dela a firmeza de quem aprendeu a sangrar calada.

— O que a gente faz primeiro? — ela perguntou, quase sem ar.

Eu não respondi.

Só olhei.

Ela entendeu.

A gente respira. E depois age. Como sempre.

Uma enfermeira veio até mim com um punhado de prontuários nas mãos. Os nomes rabiscados, idades entre quatro e dez anos.

— Doutora Estela — disse ofegante. — Esses três precisam de cirurgia urgente. Um trauma craniano, um caso de perfuração abdominal, e outro com suspeita de hemorragia interna. O resto está estável, por enquanto.

Peguei os papéis. Meu estômago se revirou quando li os detalhes.

— Encaminha o primeiro pro centro cirúrgico — falei. — Vou lavar as mãos.

E fui.

O resto da madrugada passou como se eu estivesse submersa. Uma operação atrás da outra. Vozes cortando o ar. Sons de monitores. Um menino de sete anos que resistiu mais do que deveria. Uma menina de seis que não resistiu nada.

Pais que gritaram até perder a voz.

E eu... ali.

Firme.

Inquebrável.

Pelo menos por fora.

Já eram quase cinco da manhã quando o silêncio voltou a existir. O corredor parecia outro lugar. As luzes ainda frias, mas agora sem pressa. Só cansaço.

Entrei no banheiro e encarei meu reflexo.

Olheiras profundas. Rosto sem cor. Olhos... vazios.

A porta se abriu. Catarina entrou. Não disse nada. Só me abraçou por trás, os braços apertando meu peito, e o rosto dela encostado no meu ombro.

Ficamos assim. Paradas. Respirando o mesmo ar saturado.

Ela sabia.

Sabia o que era ver uma vida acabar nas suas mãos. Sabia o que era ver esperança escorrer pela mesa cirúrgica. Sabia o que era sorrir pra uma mãe e depois dar a pior notícia da vida dela.

Ficamos ali um tempo que não sei medir.

Até que ela sussurrou:

— Vem. A gente precisa descansar. Ainda tem um dia inteiro pela frente.

Assenti, sem falar nada.

Na sala de descanso, me joguei na poltrona de sempre, com a cabeça encostada na parede. O corpo queria dormir. Mas a mente… não deixava.

As imagens vinham uma atrás da outra. A menina loira que apertou minha mão antes de apagar. O garoto que me perguntou, com voz fraca: “Dói morrer, doutora?”

Como se acostumar?

Como olhar pra isso e seguir?

Fechei os olhos, mas as imagens estavam atrás das pálpebras também.

Suspirei fundo e peguei o celular. Quase 5h da manhã. Três chamadas perdidas da minha mãe. Algumas mensagens de grupo médico.

E então, no topo da tela… o nome não salvo, mas que eu reconheceria em qualquer idioma.

Abri a mensagem.

Lorenzo:

> "Sei que deve estar exausta. Não espero resposta. Só queria saber se você está bem.

Você me parece o tipo de pessoa que carrega o mundo, mesmo quando o mundo te esmaga.

Boa noite, Estela."

Meu coração… parou.

Por um segundo, esqueci o hospital. O sangue. O choro. Esqueci até da dor nas costas.

Só ele.

A lembrança daquela única noite: o cheiro dele, a forma como me segurou como se o mundo inteiro estivesse desabando e eu fosse o único abrigo.

A forma como ele me olhava — como se me quisesse inteira, mesmo sabendo que não podia.

Tinha algo nele que me puxava como correnteza.

Algo errado. Mas inevitável.

E ali, no escuro daquela sala fria, com o corpo destruído e a alma em pedaços…

Eu desejei estar nos braços do homem mais perigoso que já conheci.

Mesmo sabendo que isso talvez fosse o meu fim.

Depois da mensagem de Lorenzo, eu dormi como se tivesse tomado um sedativo. Era como se aquelas palavras tivessem afrouxado algo dentro de mim — uma tensão invisível que me mantinha sempre em alerta. Só uma frase. Só um gesto. Mas foi tudo.

Quando o bip me acordou, senti o corpo pesado, mas menos quebrado. Era hora da primeira ronda. O plantão ainda ia longe — 36 horas no total — e a noite anterior tinha sido um campo de batalha, mas, curiosamente, o resto passou como um rio calmo depois da tempestade.

Meus pacientes estavam estáveis. Alguns até sorriam. Um menino que tinha sido operado de madrugada me chamou de "doutora mágica", e por alguns minutos, deixei meu coração acreditar nisso.

Quando finalmente deu meu horário de saída, o alívio veio como um sopro quente no inverno. Eu só queria casa. Um banho. Silêncio. Talvez comida de verdade.

Passei na sala dos médicos e me despedi de Catarina, que ainda tinha mais algumas horas de plantão. Ela me deu um abraço apertado, daqueles que dizem vai, mas volta inteira. Agradeci aos céus por não ter cruzado com Eduardo — eu não estava com energia pra lidar com olhares que dizem mais do que deveriam.

Ao chegar no apartamento, larguei as chaves no balcão e fui direto pro banheiro. A água quente escorria pelas costas como se quisesse lavar não só o suor, mas as memórias. Me vesti com uma blusa velha, peguei qualquer coisa da geladeira e fui pro sofá com um prato no colo e uma série qualquer na TV.

Mas, é claro, ele estava lá.

Lorenzo.

A mensagem ainda vibrava na minha mente como um eco antigo que se recusa a desaparecer.

“Você me parece o tipo de pessoa que carrega o mundo, mesmo quando o mundo te esmaga.”

Como ele podia me ler tão bem, com tão pouco?

Terminei de comer, ou melhor, empurrei o resto da comida, e o sono chegou antes que eu pudesse decidir se devia responder ou não. Cochilei ali mesmo, a TV ainda ligada, o prato em cima da mesinha de centro.

O celular me acordou com um toque estridente que cortou o silêncio do apartamento.

— Alô? — falei com a voz rouca de quem dormiu pouco e mal.

— Estela! — a voz da minha mãe, empolgada como sempre. — Adivinha só! Eu consegui uns dias de folga!

Sentei no sofá, ainda meio zonza, mas um sorriso involuntário escapou.

— Jura, mãe?

— Juro! E adivinha mais: eu e a Isadora estamos indo te ver! Saímos da Carolina do Norte amanhã bem cedinho. Chegamos aí à noite!

Levei a mão à testa, rindo.

— Meu Deus, mãe… que surpresa boa. Faz tempo demais.

— Eu sei. A gente sente sua falta. Vai preparar um almoço decente pra gente, viu? Nada de fast food.

— Prometo me esforçar.

Conversamos por alguns minutos. Ela me contou sobre a escola da Isadora, sobre a última discussão com a vizinha do andar de cima, e sobre o novo corte de cabelo que ela jurava que eu ia odiar. Quando desliguei, o apartamento parecia menos vazio.

Fui até a cozinha e comecei uma lista mental de tudo o que precisava arrumar. Comida, toalhas limpas, flores pra dar uma cor no ambiente. Talvez um passeio turístico, mesmo que clichê.

Mas no meio da lista, a pergunta escapou sem pedir permissão:

Será que minha mãe aceitaria Lorenzo como genro?

Dei uma risada curta, amarga.

Ela era do tipo que confiava no instinto. Sempre dizia que sentia o cheiro do caráter das pessoas antes mesmo de saber o nome.

E Lorenzo…

Lorenzo era sombra, poder e silêncio.

Era o tipo de homem que qualquer mãe mandaria embora só de olhar.

Mas tinha algo nele que me chamava, mesmo contra minha vontade. Mesmo contra minha lógica médica, minha ética pessoal, meu instinto de sobrevivência.

Fechei a lista, larguei o celular e me encarei no espelho da sala.

— Estela, no que você está se metendo?

Eu não sabia a resposta. Ainda....

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