1 - Licença materna

POV: Angelina Garcia

TRÊS ANOS DEPOIS…

Talvez a vida fosse como um divisor de águas.

Uma parte segue seu curso rumo ao mar, livre, inevitável. A outra se desvia, forçada a encontrar novos caminhos. Mas nenhuma das duas permanece a mesma. E se, por algum milagre, um dia voltarem a se encontrar… o reencontro jamais será como antes.

Foi o que senti naquela manhã.

Ao vê-lo.

Raul.

O homem que um dia jurei amar até o fim da vida, agora caminhava de mãos dadas com outra. 

Sorriam. 

Conversavam baixinho. 

Como se o mundo lá fora não existisse  e talvez, para eles, realmente não existisse de fato.

A mulher ao lado dele, Samara Oliveira. 

O ventre dela já denunciava o que eu preferia não ver: a nova vida que construíam juntos. O novo capítulo, sem mim.

O vestido salmão dela se moldava à barriga em crescimento, e Raul… Raul parecia feliz. Com o peito erguido, o sorriso leve, os dedos entrelaçados aos dela. Orgulhoso da sua mulher mais nova e do filho macho que estava a caminho, mais um. Já tínhamos um, tivemos um casal, e agora, ele terá outro.

E eu, do outro lado da rua, imóvel.

Me sentia partida.

As lembranças vieram como um vendaval:

— Eu te amo, Lina!

— Sim! Eu aceito!

Fragmentos de uma vida. De uma história que, para mim, ainda era recente demais para ser apagada.

Fazia três anos.

Três longos anos.

E ainda assim, doía como se tivesse sido ontem.

Abaixei o rosto, fingindo procurar algo na bolsa. A vergonha queimava minha pele. Eu queria correr até ele e gritar, perguntar: Como você conseguiu seguir em frente tão rápido?

Mas engoli seco.

— Júlia! Anda logo, filha! — chamei, tentando disfarçar meu desespero enquanto girava a chave do carro.

— Ai, mãe, já tô indo! — reclamou minha filha mais velha, se aproximando com sua habitual lentidão adolescente. Lançou a mochila no banco traseiro como se fosse um fardo.

— Que peso é esse? — perguntei, enquanto ela se acomodava.

— Aula de anatomia — respondeu, cansada, apoiando a cabeça na janela. Devia ter estudado a noite toda.

Sorrio de leve, tentando me concentrar no presente. Mas parte de mim ainda estava lá atrás, naquele calçadão, observando o pai dos meus filhos sorrindo para outra mulher.

Eu queria acreditar que aquilo não me afetava mais. Mas mentir para si mesma é uma arte, e eu ainda não a dominava.

— Se ele me reprovar de novo, eu denuncio ao conselho! — resmungou Júlia, puxando a realidade de volta. — Isso já é perseguição!

— Você estudou direitinho, filha?

— Claro, né mãe! — respondeu irritada, jogando os cabelos ruivos para o lado.

Apenas sorri. 

Conheço minha filha. Ela se cobra demais, assim como eu. Talvez demais até.

Dirigi em silêncio, deixando-a na faculdade. Depois segui para o único lugar onde ainda me sentia no controle da minha própria vida: o escritório Prado.

O prédio imponente se erguia diante de mim como um refúgio de mármore e silêncio.

Ali, ninguém sabia da minha dor.

Ali, eu era apenas Lina Garcia,  a secretária pontual, eficiente, que mantinha tudo no eixo. Ainda casada, mãe de dois filhos, a família perfeita. 

Passei pela recepção, como sempre:

— Bom dia, dona Marta. Cleto.

— Bom dia, Lina! Preparada pra mais um dia? — sorriu a senhora idosa.

— Que seja um bom dia, Lina! — brincou Cleto, o auxiliar de limpeza simpático.

— Que seja! — respondi com um meio sorriso, entrando no elevador.

Organizei a sala da doutora Débora, minha chefe. Mulher intensa… e grávida de quase nove meses.

Mesmo prestes a dar à luz, Débora continuava ali, empurrando portas com a barriga, arquivando processos com precisão, e exigindo o café descafeinado que só eu sabia fazer, segundo ela.

— Lina, por favor… aquele cafezinho mágico! — pediu ela ao entrar, usando um vestido verde-azeitona colado ao corpo.

— Débora! Você precisa repousar. A obstetra foi clara!

— Lina, pelo amor de Deus, você não vai começar… — reclamou, revirando os olhos. — Não sinto nada! Me deixa trabalhar em paz.

Apenas sorri. Convencê-la era impossível.

O dia seguiu tranquilo. Estudo de casos. Leituras. 

Conversas dispersas sobre maternidade e enjoo.

Mas à tarde, o clima mudou, era inadiável está conversa. 

— Lina… preciso te contar uma coisa. — Débora largou a pasta sobre a mesa com um sorriso diferente. O tipo de sorriso que precede bombas.

— O que foi agora? — perguntei, tensa.

— Conversei com meu irmão, Fernando. E bem... você sabia que ele tem um filho bastardo?

Arregalei os olhos.

— Como assim?

— Um filho fora do casamento. Advogado. Até Promissor…é o que dizem. Bonito, tipo galã de novela… — ela deu de ombros. — E olha, ele tá se destacando em Fortaleza. Pensei em chamá-lo para ficar no meu lugar durante a licença.

Franzi o cenho. Aquilo me soava perigoso. Um estranho à frente da Prado?

— Você nem conhece o homem, Débora!

— Mas eu não tenho escolha, Lina. Fernando disse que não há ninguém na família mais capaz do que ele, então temos que contar com ele.

— E se ele arruinar tudo?

Eu não confio nele, mas confio em você. Porque vai ser você quem vai trabalhar com ele — disse ela, sorrindo maliciosamente.

Meus instintos gritavam.

Algo dentro de mim dizia que aquele homem

Esse tal Saulo Prado…

Não era só mais um advogado.

Não era confiável.

Mal sabia eu que o bastardo da família traria de volta sensações que eu julgava mortas ou que nunca existiram.

Desejos que dormiam sob a minha pele.

E, principalmente, verdades que eu não estava pronta para encarar.

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