Meu paciente aminesico está obcecado por mim
Meu paciente aminesico está obcecado por mim
Por: Eloisa Silva Reis
capítulo 1 - Sangue na Estrada

O cheiro antisséptico do hospital grudava na pele, um perfume teimoso que nem as férias prometidas conseguiam apagar. Enfiei as últimas peças na mochila: um romance amassado, meu caderno rabiscado, um casaco leve. A lua entrava pelas janelas altas do vestiário, revelando o pó dançando no ar.

Do outro lado da bancada, Kate mexia o chá com um gesto calmo. Impecável como sempre, com a trança escura pousada no ombro e os olhos âmbar cheios de ironia, contrastava comigo: moletom puído, blusa larga, cabelo preso num coque desastrado.

— Dessa vez eu termino os livros da pilha — disse, ajeitando o elástico frouxo no pulso. O aroma da última rodada de café ainda pairava no ar.

Kate riu, aquela risada cristalina que sempre me fazia sorrir. — Elysa, você diz isso toda vez. Vai viver, menina. Compra uma TV. Ou um namorado.

— E você indo pra Paris com o noivo, né?

— Paris! — girou no lugar, braços abertos. — Croissants, arte... e nada de poeira de livro.

Saímos juntos até o portão do hospital. O ar fresco limpava um pouco o cheiro do plantão. Daniel, noivo de Kate, nos esperava no carro.

— Elysa, cuidado na estrada — avisou ele, inclinando-se para fora da janela. — A rádio falou de desaparecimentos. Possível assassino em série.

Dei de ombros, tentando ignorar o arrepio. — Boato de cidade pequena.

Kate franziu o cenho. — Justamente por isso. Você mora no meio da floresta. Se alguém te encontrar ali...

— Eu fico bem — interrompi. — Sempre fico. Agora vão logo. E tragam lembrancinhas.

Abracei Kate, senti o perfume dele e ouvi um “toma juízo” sussurrado antes de vê-lo partir. O aviso de Daniel ficou ecoando, mas tentei afastar. Cidade pequena adora inventar tragédia.

Subi na minha moto. O motor roncou com familiaridade. Peguei a estrada, em direção ao meu refúgio de papel e silêncio.

A estrada se estreitou, o asfalto cedeu lugar à terra batida. O céu escurecido se estendia como um manto salpicado de estrelas, e as copas altas das árvores formavam um túnel escuro, galhos entrelaçados como ossos contra o firmamento. Nenhuma casa, nenhum carro. Só o zumbido incessante dos insetos e o cheiro úmido de folhas em decomposição.

A luz fraca do farol da moto cortava a escuridão, revelando troncos musgosos e folhagens agitadas pelo vento gelado. Era meu trajeto de sempre, mas algo parecia diferente. Talvez a conversa no portão, talvez o silêncio pesado da noite.

Foi quando ouvi: um gemido. Rouco, abafado, cheio de dor. Vinha da mata à direita.

Puxei o freio. A moto parou com um solavanco. Desliguei o motor. O silêncio que se seguiu foi sufocante. Apontei o farol para a vegetação. Troncos, galhos… e então, algo. Tecido. Pele. Um corpo estendido entre as folhas.

O instinto falou mais alto. Desmontei num salto e corri até ele. Um homem, roupas escuras, cabelo desalinhado caindo sobre o rosto manchado de sangue. Encontrei o pulso: fraco, mas presente.

— Está tudo bem — murmurei, mais para mim mesma.

Inclinei-me para erguê-lo. Foi aí que ele acordou.

Os olhos se abriram abruptamente — vermelhos, intensos, quase luminosos. Ele se debateu em pânico, me derrubando. Rolamos pelo chão até que ele caiu… direto sobre minha moto.

O baque foi seco. O farol estilhaçado, a roda torta, a suspensão comprometida. Minha única forma de transporte, inutilizada.

Ele desmaiou outra vez. E eu fiquei ali, no barro, encarando a moto quebrada e o corpo inconsciente. O hospital ficava a uma hora de caminhada. A floresta era escura, perigosa. Mas a trilha secreta para casa estava ali, a quinze minutos.

Não havia escolha.

— Você vem comigo — murmurei, firme.

Arrastá-lo pela mata foi uma tortura. Cada som me fazia estremecer. O peso dele, o cheiro de sangue, o medo... tudo se misturava ao suor frio que me colava à pele.

Quando as luzes altas do chalé surgiram entre as árvores, quase desabei.

Minha casa. Uma estrutura escura e colossal, com escadarias em espiral e vitrais cobertos de poeira. Um castelo de livros enterrado na floresta.

Empurrei a porta de carvalho. E o arrastei para dentro. Para o único lugar onde eu conhecia todos os segredos.

O ar interno acolheu-nos com seu perfume inconfundível e reconfortante: couro envelhecido de milhares de lombadas, poeira antiga e o leve travo amargo da camomila seca que eu sempre deixava em pequenos potes pelos cômodos. Era um cheiro de segurança, de pertencimento. As estantes de madeira escura, altíssimas, forravam cada parede visível, formando corredores estreitos e convidando a explorar passagens escondidas atrás de estantes que giravam ou deslizavam, revelando salas secretas ou escadas íngremes que subiam para mezaninos cheios de mais livros. Um labirinto de papel e sonhos. Eu conhecia cada botão disfarçado, cada alavanca camuflada.

Levei o desconhecido até uma pequena sala anexa à cozinha, mais prática, com um sofá velho e um tapete gasto. Ali, à luz de uma luminária de leitura, lavei e fechei o corte na têmpora dele com os curativos do meu kit de primeiros socorros básico. Os olhos vermelhos estavam fechados, o rosto lívido sob a sujeira. Vestia roupas de motoqueiro, sim, mas havia algo nele… uma intensidade latente, mesmo inconsciente. Depois dos primeiros socorros, exausta mas ainda adrenalizada, voltei pela trilha escura para tentar trazer o que pudesse da moto – o baú com alguns pertences, o capacete. Foi uma jornada assustadora, cada som amplificado pelo medo. Voltei correndo.

Na manhã seguinte, a luz do sol filtrada pelos vitrais empoeirados pintava faixas coloridas no chão de madeira, iluminando a poeira dançante. O homem ainda estava profundamente inconsciente no sofá, a respiração superficial mas regular. A cor não tinha voltado ao seu rosto. Revisei os curativos e, ao vasculhar os bolsos da jaqueta de couro com cuidado, encontrei uma carteira. Pouco dinheiro, nenhum documento com foto… mas um cartão desbotado de um serviço de táxi rural, com um número manuscrito. Era algo.

Liguei. Horas depois, um jipe velho e barulhento parava diante do chalé. O motorista, um homem idoso de olhos cansados, ajudou-me a carregar o desconhecido ainda inerte. A viagem de volta ao hospital foi silenciosa, tensa. Enquanto o jipe balançava na estrada de terra, olhei para o rosto impassível do homem ao meu lado, os cabelos escuros caídos sobre a testa, os lábios entreabertos. Quem era ele? O que acontecera naquela estrada?

No hospital, o ambiente familiar trouxe um alívio passageiro. Colegas vieram ajudar. Os exames, porém, trouxeram a notícia dura: traumatismo craniano significativo. Ele entrara em coma. O médico falou baixo, com uma expressão grave. Manter alguém em coma internado, com monitoramento constante… era proibitivo. Absurdo.

Foi quando Carla, uma enfermeira mais velha com olhos bondosos e mãos hábeis, me puxou de lado na sala de descanso, enquanto os outros preparavam uma maca para o transporte de volta.

— Elysa… — ela começou, voz suave mas prática. — Olha, a situação dele é estável, vitalmente. Não precisa de respirador, só de soro, nutrição por sonda, e os cuidados básicos pra evitar úlcera e trombose, tu sabe bem. Muita gente aqui na região, quando a coisa aperta… — Ela fez uma pausa significativa. — Cuida em casa. É uma opção. Difícil, mas possível. Principalmente pra ti, que és enfermeira. A gente te ajuda a montar o que precisar, te orienta. É só vigiar e esperar ele acordar… se acordar.

Olhei para o corredor, onde o homem estava sendo transferido para uma maca, seu corpo inerte sob o lençol branco. O hospital era caro. A casa… a casa era minha, era isolada, era cheia de segredos. Mas também era um santuário. E eu era enfermeira.

O aviso de Daniel sobre o assassino voltou com força. Trazer um desconhecido, um homem com olhos vermelhos e um passado violento, para dentro do meu labirinto de livros? Era loucura. Mas deixá-lo aqui, condenando-o por falta de recursos? Isso também não era eu.

O cheiro de couro velho e camomila da minha biblioteca pareceu chamar-me, uma promessa de controle dentro daquele caos.

Respirei fundo, o cansaço das últimas vinte e quatro horas pesando como chumbo nos ossos, mas uma centelha de decisão acesa no peito.

— Tá bom, Carla — ouvi minha própria voz dizer, mais firme do que esperava. — Vou levar ele. Monta o que for preciso, por favor.

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