Dante Bianchi
As vozes ao redor da mesa se tornavam cada vez mais secas, carregadas de gravidade. A boate podia estar vibrando com luzes, música e corpos dançando como se o mundo fosse acabar amanhã, mas onde eu estava sentado, o clima era outro. Não havia mais espaço para conversas banais sobre o sabor do uísque ou sobre qual mulher naquela pista teria a melhor performance entre os lençóis. As piadas deram lugar a planos, alianças e ameaças veladas. — Riccardo está muito quieto esses tempos — murmurou Luca, com os olhos estreitos, como se visse a silhueta do inimigo se formar entre os vultos da pista de dança. — Receio que esteja bolando alguma coisa para nós. Enrico levou o copo aos lábios antes de responder, como se saboreasse mais a estratégia do que o próprio uísque. — Nossos informantes não comentaram nada sobre movimentações incomuns. Ainda. Donatello deu de ombros, indiferente, servindo mais uma dose. — Ou talvez esteja com medo. Nossos aliados se multiplicam como ratos, e ele sabe disso. — Pouco me importa o que Riccardo pensa — minha voz saiu firme, cortante. — Se ele ousar tocar em qualquer centímetro do que é nosso, vamos responder queimando o território dele com o triplo da força. Houve um silêncio respeitoso. Eles sabiam que eu não ameaçava por impulso. Eu prometia. Então, como se cansado do peso da guerra invisível que pairava sobre nós, Enrico se ajeitou na cadeira e apontou discretamente para a outra ponta da área VIP. — Estão vendo ali? — A malícia estava de volta no tom. — O secretário de educação com aquela loira de peitö inflável. Aposto que ela arranca dez mil euros dele sem nem encostar num lençol. A risada veio, espalhando-se entre eles. Era um alívio momentâneo, como o sopro que antecede uma tempestade. — Dez mil? Aposto que ela ainda dá um böquete antes — Donatello riu, servindo mais uísque com a destreza de quem não tinha pressa em morrer. — Ele é idiöta, mas não tanto. Deixei que as vozes desaparecessem no fundo da minha mente. Me levantei, o copo ainda na mão, e caminhei até a grade de vidro que dava visão para a pista. Precisava de um instante longe da estratégia, da política, da merda toda. Mas, se eu fosse honesto, eu sabia o que me puxava até ali. Ou melhor, quem. Ela. A morena dos olhos desafiadores e da dança hipnotizante. Ainda estava ali, com as amigas, mexendo o corpo como se não houvesse um único problema no mundo. Ela parecia se entregar à música com uma liberdade que contrastava brutalmente com a minha rotina sufocante. Sei que ela me disse ser comprometida, mas havia algo... algo nos olhos dela. Um brilho hesitante. Um tremor sutil na respiração. A tensão involuntária do corpo quando cheguei perto demais. Ela mentiu. E isso só me deixou mais obcecado. Por quê? O que ela estava escondendo? Um namorado imaginário? Um trauma? Ou era só um jogo? Algo me dizia que ela queria provocar — e ao mesmo tempo se proteger. Um paradoxo de desejo e negação. E eu sempre fui péssimo em aceitar não como resposta. O jeito que os quadris dela se moviam, em total sincronia com a batida, era uma obra de arte feita para o pecado. Os cabelos soltos, negros como pecado maldito, dançavam com ela, como se até o próprio corpo celebrasse o caos. Era difícil encontrar mulheres com aquele tipo de beleza por aqui. Exótica, cheia de contraste. E o sotaque dela... italiano com toques de algo mais doce, mais quente. Algo latino. — O que é que você tanto olha? — A voz de Enrico me arrancou do transe. Nem me virei. Apenas respondi com frieza: — Nada demais. Ele riu baixo, e em seguida se colocou ao meu lado, apontando com o queixo para a morena. — Ficou fascinado nela, não foi? Fiquei em silêncio. Ele podia pensar o que quisesse. Aquilo não era fascínio. Era obsessão em crescimento. Donatello apareceu logo depois, como uma maldita sombra. — Realmente, elas são bem gostosas. Não respondi. Porque pra mim, aquilo ia além de gostosura. Aquilo era instinto. Era um tipo de atração que fazia meu sangue correr mais rápido e minha razão pedir arrego. E isso, vindo de mim, era raro. Quase inédito. Talvez ela soubesse que estava brincando com fogo. Mas o que ela ainda não sabia… É que o fogo, sou eu. Foi aí que percebi uma movimentação estranha ao redor das três. Um daqueles sussurros visuais que o instinto capta antes mesmo da lógica entender. Dois homens se aproximavam como hienas farejando carne vulnerável. Bêbados, cambaleantes e com aquela expressão podre de quem se acha engraçado demais pra ser recusado. Um deles — o mais ousado ou talvez o mais idiota — chegou perto demais de uma das amigas da morena. Falou algo no ouvido dela. Ela recuou com nojo estampado no rosto, empurrou o peito dele com firmeza, tentando se afastar. Só que o infeliz não entendeu o recado. Foi então que ela entrou em ação. A morena. A minha morena. Se colocou na frente da amiga como um escudo humano, o corpo ereto, olhar afiado como faca. A postura dela dizia tudo: “toca de novo e vai perder a mão”. O cara tentou encostar no rosto dela — ousado, estúpido, suicida — e ela reagiu no mesmo segundo, batendo na mão dele com um tapa seco, certeiro, como quem mata uma mosca nojenta. A tensão na pista aumentou. Eu soube naquele instante. Aquilo não ia acabar bem. E eu não fui o único a perceber. Enrico estava ao meu lado, o maxilar travado como se estivesse prestes a esmagar vidro entre os dentes. Donatello largou o copo com um baque surdo na mesa e veio atrás de nós. Não trocamos uma palavra sequer. Apenas seguimos, passos largos, determinados, sem pausa. Descemos as escadas da área VIP como caçadores partindo para a jugular. A raiva subia pelo meu corpo feito veneno, queimando por dentro. Eu sentia o sangue pulsar com mais força, as mãos cerradas como se já soubessem o que fazer. Enrico estava pior. A boate era dele. Aquilo não era só uma invasão de espaço físico — era um insulto direto ao nome dele, à honra da casa, à reputação da máfia. E entre mafiosos, honra não é só palavra bonita em juramento. Honra é lei. Podíamos ser homens perigosos. Podíamos falar merda entre nós, fazer piadas imorais e gargalhar alto sobre o que faríamos se o mundo acabasse amanhã. Mas nunca. Nunca tocaríamos numa mulher sem o consentimento dela. Essa era uma linha que não se cruzava. Nem bêbado. Nem por impulso. Nem por caralho nenhum. E esses dois desgraçados acabaram de atravessar essa linha como se ela não existisse. Estavam prestes a descobrir que, no nosso mundo, isso tem preço. E o preço é alto. Muito alto.