Capítulo 02 - Lustro.

Marina Salles

Acordei com a luz invadindo o quarto como um tapa na cara. A cabeça ainda girava um pouco, culpa do vinho barato da noite anterior, mas a empolgação gritava mais alto do que qualquer resquício de ressaca.

— Levanta, morta-viva! — Alicia gritou da varanda, sacudindo uma caneca de café como se fosse um troféu.

Resmunguei alguma coisa ininteligível e me arrastei até o banheiro, prometendo a mim mesma que hoje seria diferente. Hoje, eu viveria. Sem lamentações. Sem Felipe. Sem passado.

Quando saímos do apartamento, Roma parecia uma pintura viva. As ruas de paralelepípedo, os prédios antigos cobertos de hera, o som das vespas zunindo pelas vielas... Tudo era tão bonito que chegava a ser irritante.

Passeamos pela Fontana di Trevi, jogando moedas e fazendo desejos idiotas. Subimos os degraus da Piazza di Spagna, tiramos fotos cafonas com sorvetes na mão e nos perdemos mais vezes do que seria aceitável para três advogadas adultas.

Mas ninguém reclamou.

Nem eu.

No início da tarde, famintas e com os pés gritando por misericórdia, encontramos um restaurantezinho charmoso escondido numa ruela menos turística. As mesinhas do lado de fora, cobertas com toalhas quadriculadas vermelhas e brancas, pareciam saídas direto de um filme.

Nos sentamos, jogamos as bolsas no chão e pedimos vinho e massas sem nem olhar direito o cardápio.

— Eu me recuso a comer qualquer coisa que não tenha glúten nessa viagem — Fernanda declarou, erguendo a taça.

— Glúten, queijo e vergonha na cara — Alicia completou, brindando.

Eu ri, me acomodando melhor na cadeira, e foi aí que percebi a mesa ao lado.

Um grupo de quatro mulheres conversava animadamente em italiano. Não que eu fosse fluente, longe disso, mas depois de anos de N*****x, Duolingo e novelas ruins, eu arranhava alguma coisa. E o tom conspiratório delas chamou minha atenção.

— Hai sentito della nuova discoteca? — uma delas perguntou, animada. — Stasera è l'inaugurazione. Uomini molto potenti saranno lì.

(“Você ouviu falar da nova boate? Hoje é a inauguração. Homens muito poderosos vão estar lá.”)

Alicia e Fernanda também ouviram. Fernanda arqueou uma sobrancelha e sorriu.

— Homens poderosos? — ela sussurrou pra gente. — Já gostei.

Continuei escutando discretamente. Outra mulher, de cabelo curtinho e um vestido azul vibrante, acrescentou:

— Alcuni dicono che potrebbero esserci dei mafiosi...

(“Alguns dizem que podem ter mafiosos lá...”)

Arregalei os olhos e olhei pra minhas amigas imediatamente.

— Mafiosos? — cochichei, horrorizada.

Antes que eu pudesse sugerir que talvez não fosse uma boa ideia, a mulher de vestido azul deu de ombros e riu.

— Ma dai, figurati! Quelli non si fanno vedere in posti del genere.

(“Ah, por favor! Eles não aparecem em lugares assim.”)

A tensão diminuiu um pouco. Alicia se inclinou para a frente, olhos brilhando de empolgação.

— Eu ouvi festa, homens poderosos e zero chance real de máfia. Isso pra mim soa como um plano — disse ela, cruzando os braços como quem não ia aceitar um ‘não’.

— Gente, eu não sei... — comecei, mordendo o lábio.

Fernanda já puxava o celular, digitando freneticamente.

— Calma, Mari! Deixa eu ver como é o lugar. — Alguns segundos depois, ela virou a tela pra gente. — Olha isso!

A boate era um espetáculo. Um prédio moderno, todo envidraçado, com luzes neon minimalistas, e um nome em dourado na fachada: "Lustro".

— Se mafiosos querem ser discretos, não vão aparecer num lugar onde a mídia tá em cima — Alicia argumentou.

Eu ainda hesitava. Parte de mim queria ir pra cama cedo, colocar uma máscara facial e fingir que minha vida não estava de pernas pro ar. A outra parte... bem, a outra parte queria sentir que ainda era capaz de se divertir.

— Vocês têm certeza? — perguntei, cruzando os braços.

— Absoluta. — Fernanda sorriu. — Confia em nós.

Suspirei.

— Ok, mas se eu acabar presa ou sequestrada, vou assombrar as duas pelo resto da vida.

Elas riram e brindamos novamente, agora com vinho rosé.

Fernanda, determinada, ficou no site da boate tentando conseguir ingressos enquanto a gente almoçava. Por um tempo, nada. Tudo esgotado.

Até que, no meio da sobremesa, ela soltou um gritinho.

— CONSEGUI!

Quase derrubei meu café de susto.

— Como assim? — perguntei.

— Liberaram cinco ingressos agora! Peguei três! — Ela levantou o celular como se tivesse ganhado na loteria.

— Isso é um sinal — Alicia disse, já batendo palmas.

A animação virou uma febre entre nós. Terminei meu café num gole só e saímos do restaurante como três adolescentes prestes a fazer besteira.

Passamos o resto da tarde pulando de loja em loja, caçando vestidos perfeitos, saltos que fossem sensuais o suficiente pra matar alguém só com um olhar — e que não matassem a gente de dor até o fim da noite.

Enquanto experimentava um vestido preto justo, com uma fenda que subia perigosamente até a coxa, encarei meu reflexo no espelho e pensei: É isso. Essa é a Marina que eu quero ser agora.

Não a Marina que chorava por um babaca.

Não a Marina que morria de medo de viver.

Sorri para mim mesma.

Se eu soubesse o que me esperava naquela noite, talvez tivesse hesitado. Talvez tivesse corrido.

Mas ali, naquela loja em Roma, tudo que eu queria era dançar até esquecer quem eu tinha sido.

E foi exatamente isso que eu prometi pra mim mesma enquanto saía do provador, pronta para o que viesse.

Até mesmo... para o que eu não fazia ideia que viria.

De volta ao apartamento, parecia que tínhamos sido possuídas por três adolescentes em surto coletivo. Música alta, roupas espalhadas por todo canto, maquiagens ocupando qualquer superfície plana e taças de vinho meio esquecidas no processo.

Escolhi o vestido preto justo que tinha comprado primeiro, mas, depois de experimentar e me olhar no espelho... alguma coisa não bateu.

Não era ruim. Eu parecia bonita. Mas não era o vestido.

Fucei a sacola da loja e meus olhos encontraram uma segunda opção que eu tinha pegado "por desencargo de consciência": um vestido azul marinho, curtinho, de alças finas, que grudava no corpo como uma segunda pele e tinha um decote nas costas de fazer qualquer mortal perder o ar.

Respirei fundo. Peguei o vestido. Experimentei.

Assim que vi meu reflexo, soube.

Era esse.

O azul marinho realçava meu tom de pele e deixava minhas curvas mais marcadas, sem ficar vulgar. Nos pés, escolhi um salto alto no mesmo tom do vestido, com aquele solado vermelho icônico que fazia meu ego crescer uns dez centímetros só de olhar. Amarrei meu cabelo em um rabo de cavalo alto e firme, deixando meu rosto livre, com umas mechinhas soltas na frente pra dar charme.

Na maquiagem, investi num olho esfumado bem marcado, delineado gatinho afiado como navalha e um batom nude, porque o olhar já ia dizer tudo que precisava.

Quando saí do quarto, Alicia soltou um assobio.

— Se essa noite não render, eu me demito da vida — ela brincou, jogando o próprio cabelo pra trás.

Alicia estava deslumbrante num vestido vermelho de cetim, decotado, que dançava a cada passo dela. Nos pés, sandálias de tiras fininhas douradas. Ela deixou o cabelo solto, ondulado nas pontas, e a maquiagem era toda trabalhada num glow dourado, como se ela própria fosse uma festa ambulante.

Fernanda também não ficou pra trás. Optou por um vestido verde-esmeralda, curtinho, de um ombro só, que deixava as pernas dela — infinitas — ainda mais chamativas. Ela prendeu o cabelo num coque bagunçado, deixando uns fios estrategicamente soltos, e a maquiagem era toda focada nos lábios, pintados num vermelho vivo que parecia pedir encrenca.

Nós três juntas? Um perigo.

— Que Deus nos proteja e nos perdoe — falei, rindo, pegando minha clutch preta minimalista.

— E que Roma nunca mais seja a mesma depois de hoje — Alicia completou, já pegando o celular pra chamar o Uber.

O carro chegou em poucos minutos. Entramos, rindo e ajeitando as alças dos vestidos. O motorista era um senhorzinho simpático que mal falava inglês, mas sorriu quando Fernanda disse "boate" e "festa" com um sotaque tão forte que parecia ter saído de um filme da Sessão da Tarde.

A caminho da Lustro, a cidade parecia ainda mais viva. As luzes douradas refletiam nas fachadas antigas, enquanto as vespas cortavam o trânsito num zumbido constante.

Dentro do Uber, o nervosismo e a empolgação se misturavam num coquetel perigoso.

— Gente, vocês têm noção do que a gente tá fazendo? — perguntei, ajeitando a barra do vestido nervosamente.

— A gente tá fazendo história, bebê — Fernanda respondeu, piscando pra mim.

— Ou pelo menos umas boas histórias pra contar — Alicia emendou, rindo.

Olhei pela janela, vendo Roma passando rápido como um filme. Um frio na barriga subiu pelo meu estômago. Era excitação, medo, esperança... tudo misturado.

Hoje, alguma coisa ia mudar.

Eu sentia isso.

No fundo da alma.

Mesmo sem saber o que.

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