Dante Tavares
O sol queimava alto quando recebi a ligação: meu jatinho estava com problemas técnicos e só decolaria na manhã seguinte.
Suspirei, impaciente.
Não era a cidade que me irritava — era o que ela me lembrava: pequenas ambições, gente que queria parecer grande demais, e familiares que só sabiam sugar. Mas já que estava ali, decidi fazer o que nunca fazia: visitar meus negócios. A maioria deles tocados por meu irmão e meu sobrinho Enzo. Eu observava de longe, sempre atento, mas raramente colocava os pés. Não gostava de misturar presença com confiança.
Hoje, no entanto, senti vontade de aparecer.
Primeiro fui ao armazém de exportação, depois à loja de vinhos artesanais — estavam em ordem. Nada fora do esperado. Mas foi ao final da tarde que decidi passar pelo restaurante recém-reformado, o mais rentável da rede. O boato de que a nova chefe de cozinha era excelente tinha chegado até mim, e como o próprio Enzo estava supervisionando o lugar de perto, achei conveniente verificar.
Não esperava nada além de um jantar agradável.
Fui recebido com a deferência de sempre. O gerente quase tropeçou nas palavras tentando me agradar. Me ofereceram a mesa mais reservada. A decoração era bonita, minimalista, com um toque de charme rústico. A comida, de fato, estava impecável, embora eu tenha comido pouco — hábito de quem confia mais no controle do que no prazer.
— O chef responsável poderia vir cumprimentá-lo, senhor Tavares — sugeriu o gerente, ansioso para impressionar.
Ergui o olhar. Algo em mim despertou ali. Curiosidade? Desconfiança? Não soube dizer.
— Quem está à frente da cozinha?
— A senhorita Isadora Alencar. Jovem, mas talentosíssima. Recém-formada, porém já é considerada uma promessa. Seu sobrinho, doutor Enzo, confiou a ela a liderança da equipe.
Enzo.
É claro.
A resposta foi como um corte seco. Um nome que ultimamente vinha se perdendo em devaneios românticos, mais do que negociais. Um nome que, ao ser associado à palavra “chef”, me fez franzir o cenho.
Recém-formada e no comando?
Não. Aquilo não fazia sentido.
Eu sabia como esse meio funcionava. Jovens assim não conquistavam nada sem pagar um preço. E conhecendo Enzo como eu conhecia — impulsivo, crédulo, carente de atenção — não me surpreenderia se ele estivesse confundindo paixão com talento.
— Onde está ela? — perguntei, já me levantando.
— Ah… está no andar superior, supervisionando os pedidos e organizando a equipe para o segundo turno.
— Quero conhecê-la.
Subi os degraus de mármore sem pressa, mãos nos bolsos, olhos atentos. A cada passo, um incômodo crescia dentro de mim. Algo irracional. Uma expectativa que não tinha nome, não fui para departamento algum, conhecia bem o meu sobrinho.
Mas assim que pisei no último degrau, ouvi.
A voz.
Baixa, rouca. Um gemido abafado.
O tempo parou.
Aquela voz. Aquela maldita voz.
Era ela.
O corpo da mulher da noite anterior ressurgiu diante dos meus olhos como um raio. A pele quente. Os olhos perdidos. Os lábios entreabertos. O silêncio daquela noite — e o pecado que nós compartilhamos sem nunca pronunciar um nome.
E então, outra vez, o som. O gemido dela. Mais forte. Mais sincero.
Senti meu corpo reagir antes mesmo de compreender o que via. O pau enrijeceu sob o tecido da calça, traindo qualquer esforço que fiz para manter o controle. Não era o toque do meu corpo nela. Era o de outro. E mesmo assim, ela gemia.
Me aproximei, silencioso. A porta entreaberta me deu a visão completa do que eu jamais quis ver — e jamais deixaria de lembrar.
Ela e Enzo.
Enzo sobre ela.
As mãos dele em seu quadril, o rosto enterrado no pescoço dela. E ela… entregue. Mas os olhos dela estavam abertos. E me viram.
Ela estava parada, como se fosse obrigada a aquilo.
Os corpos ainda colados, mas os olhos... só meus.
Nos encaramos.
Ela gemia.
E aquele som me levava de volta à maldita noite em que me tornei seu erro.
O tempo congelou. O ar ficou rarefeito. O nó se formou em minha garganta.
Era o reconhecimento. A mesma mulher. A mesma boca. O mesmo fogo.
E então ouvi Enzo.
— Essa boceta é minha, não é? — ele sussurrou, sem saber que eu estava ali. — Só minha.
Ela não respondeu. Mas os olhos dela me diziam outra coisa. Ela queria negar, mas não podia.
Eu era uma cicatriz nela. E ela, uma maldição em mim.
Tentei me afastar antes que Enzo percebesse, mas era tarde. Ela parecia incrédula por perceber que havia se dado mal em sua farsa, seu rosto empalideceu ao ouvir ele me chamar de tio.
— Tio! Que surpresa boa — disse, sorrindo como um menino. — Quero que conheça alguém muito especial.
E então ela olhou para o chão, como se buscasse fugir. Vestida, mas abatida. Os olhos evitaram os meus. O rosto corado.
— Essa é a Isadora… minha noiva.
Noiva.
O sangue ferveu.
Ela me olhou, brevemente. Tentou me olhar, mas o gesto morreu pela vergonha, ao menos isto ainda tinha.
— Senhor Tavares… prazer. — A voz vacilou.
— O prazer é todo seu. — Respondi seco.
Ela abaixou a cabeça. E sumiu escada abaixo, como quem foge de um crime recém-cometido.
Esperei até que estivesse fora do alcance, então me virei para Enzo.
— Sua noiva está à frente da cozinha?
— Sim. Ela é incrível, você vai ver… inovadora, dedicada. A equipe adora ela.
— E essa liderança… é por capacidade ou por causa de você?
Enzo arregalou os olhos, surpreso com o tom.
— O quê?
— Estou perguntando se está abusando do poder que lhe dei — repeti, firme. — Ou se está apaixonado demais para enxergar que talvez esteja dando a uma mulher bonita o que ela não conquistou por mérito.
Ele franziu a testa, desconfortável.
— Isadora é talentosa. Se não fosse, eu jamais colocaria o restaurante nas mãos dela. Não misture as coisas.
— Não sou eu quem está misturando — murmurei, olhando para a porta por onde ela havia desaparecido. — Mas talvez um dia você descubra quem está ao seu lado. E quanto custa a cegueira.
Enzo ficou em silêncio.
E eu, por dentro, ardi. Não apenas pelo ciúme. Mas pelo perigo real de perder o controle, porque ela não era só a mulher do meu sobrinho, ela era a mulher que eu provei.
A noite caiu sobre a cidade com um peso estranho, como se carregasse nas sombras o reflexo daquilo que vi — e desejei — horas antes.
Voltei para o hotel, mas não consegui relaxar. Tirei o paletó, desabotoei a camisa até o peito e caminhei até o bar. Whisky. Uma dose. Depois outra. E nem assim a lembrança dela desaparecia.
Isadora.
Ela. A mulher que gemeu em meus braços sem saber quem eu era.
A mulher que agora gemia sob o corpo do meu sobrinho.
Me joguei no sofá de couro, encarando o teto. Cada detalhe dela invadia minha mente. Os cabelos desgrenhados. O gosto na minha boca. A forma como os olhos se abriram quando nos encaramos hoje. Ela sabia. Ela lembrava.