O Tio Que Voltou

Narrado por Isadora Alencar

A noite anterior ainda pulsava sob a minha pele.

Minhas mãos ainda carregavam o cheiro da cozinha. Meus lábios, talvez, ainda guardassem traços do beijo errado. Mas foi meu olhar... meu olhar que me condenou.

Dante.

Era ele. O homem da noite anterior. O mesmo que agora estava diante de mim como se fosse o próprio juiz da minha ruína. E pior: tio do homem com quem eu dividia minha cama. Meu nome. Meus planos.

O constrangimento naquela apresentação forçada havia me esmagado de dentro pra fora. Tentei olhar, tentei fingir, mas o suor escorrendo pelas minhas costas me expôs mais do que eu gostaria. Desci os degraus para o restaurante com as pernas bambas e o coração esmagado entre as costelas. Mal consegui terminar o expediente. Gritei ordens que soaram frágeis. Evitei espelhos, evitava meu próprio reflexo como se ele carregasse o rosto de uma traidora.

Voltei pra casa como uma fugitiva. Tomei banho, dois, três. E nada apagava o que eu fiz.

O homem que me arrancou gemidos no escuro era o mesmo que me fitou como uma ameaça quando ouviu Enzo me chamar de “amor”.

Que tipo de mulher isso faz de mim?

Sentei no chão da sala com a toalha ainda grudada ao corpo, cabelos pingando, e chorei. Não como quem se arrepende apenas. Mas como quem percebe que se perdeu por um instante — e que talvez tenha gostado da queda.

Tentei dormir, mas só cochilei quando o céu já clareava. E foi nesse sono leve e sem descanso que fui acordada pela campainha insistente.

Sabia que era ele.

Não Dante.

Enzo.

Vesti a primeira coisa que encontrei — uma calça moletom, uma camiseta grande demais. Prendi o cabelo num coque torto e fui abrir a porta já com a expectativa de ouvir gritos. Ou pior: ver o desprezo nos olhos dele.

Mas nada disso aconteceu.

Enzo entrou sem cerimônia, jogou as chaves sobre a mesa de jantar e passou as mãos pelos cabelos bagunçados. Estava tenso, exausto, mas... intacto.

O silêncio entre nós me feriu.

— Eu sei que você… — comecei, com a voz falha.

Ele me cortou.

— Você não vai acreditar. — suspirou fundo, como se o mundo estivesse desabando apenas pra ele. — Ele voltou para os negócios.

— Quem?

— Meu tio. Dante. O cara voltou dos mortos.

Segurei a respiração.

— Voltou... pra ficar?

— Parece que sim. — Enzo se jogou no sofá, os cotovelos nos joelhos, o olhar perdido no tapete. — Ele tá puto com tudo. Diz que as coisas estão fora do controle. Que eu deixei o restaurante virar um circo gourmet. Que as finanças estão bagunçadas. Que você tem “autonomia demais”.

Senti um arrepio. Ele me mencionou.

— E você? O que disse?

— Que ele sumiu. Que apareceu sem avisar. Que estamos tocando tudo sozinho há anos e que talvez ele devesse agradecer por eu e meu pai ter segurado o império dele. Mas ele só... me olhou daquele jeito. Frio. Como se fosse um Deus julgando os pecadores.

Frio.

A palavra bateu forte.

Porque mesmo com todos os alertas, com todas as bandeiras vermelhas, nada em Dante parecia frio pra mim. Nem o olhar. Nem o toque. Nem a forma como ele reagiu quando me ouviu gemer para o homem errado.

Enzo continuava, mas a voz dele ia ficando distante na minha mente. Ele falava de contratos, da administração da rede, da sombra constante que o tio representava.

— Tudo é dele, Isa. O nome, os imóveis, os restaurantes. Até a porcaria dos uniformes da equipe. Eu sou só um executor. Um lacaio bem treinado.

— Isso não é verdade… — tentei.

— É sim. — ele se virou pra mim. — Tudo que eu tenho que é meu... é você.

Engoli seco.

Se você soubesse, Enzo.

Se soubesse que o que você tem de mais valioso... eu traí.

— Só te peço uma coisa, Isa. — ele disse, levantando-se e se aproximando de mim. — Fica longe dele. Dante é perigoso. Manipulador. Consegue virar tudo contra você. Acha que lê as pessoas melhor do que elas mesmas.

Senti o estômago virar. Não era só Dante que lia as pessoas. Ele me devorava com os olhos. E eu deixava.

Assenti em silêncio. Enzo me beijou a testa e saiu.

O nó na minha garganta apertou. Eu me afundei no sofá. Chorei de novo.

Mas dessa vez, não era só arrependimento.

Era… desejo negado, era medo, tinha acabado de comprar um apartamento, minha mãe comprado o próprio carro, sem o meu emprego, tudo isso ruiria.

Cheguei ao restaurante mais cedo. Precisava ocupar minha mente. Mergulhar nos ingredientes, nos cortes precisos, nos aromas intensos. Lá, no calor da cozinha, eu conseguia esquecer — por breves instantes — que o caos era o verdadeiro tempero da minha vida agora.

Mas a paz durou pouco.

— Isadora… — sussurrou Carla, uma das garçonetes, me puxando pelo braço discretamente. — O todo poderoso chegou. 

Parei no meio do corredor. — Quem? — Perguntei, sem compreender ao certo. Um frio cortante subiu pelas minhas pernas, ao relembrar das palavras de Enzo mais cedo, o céu estava cinza, o sol nem se arriscava a sair. — O senhor Dante Tavares.

— Onde ele está?

— Sala de reuniões. Pediu pra rever o menu executivo, quer entender as atualizações que você fez. — ela hesitou. — Quer que eu vá com você?

— Não. — murmurei. — Eu cuido disso.

Cada passo até a sala foi uma sentença. Eu ouvia meu coração. Sentia o sangue quente me pulsando nos ouvidos. Meus dedos tremiam.

Bati na porta. Duas vezes.

— Entre. — a voz dele atravessou a madeira como um fio de navalha.

Abri.

Ele estava de pé, de costas para mim, olhando pela grande janela que dava para a avenida movimentada. Camisa branca impecável. Calça social. Braços cruzados. Imóvel como uma estátua.

Ele se virou devagar. E então, nos encaramos.

Os olhos dele… eram outra língua. Um idioma que eu parecia entender.

A sala encolheu. O tempo parou.

— Bom dia, senhor Tavares. — minha voz soou mais firme do que eu esperava.

— Bom dia, chefe Alencar. — respondeu, com aquela ironia que arranhava por dentro.

Eu fechei a porta atrás de mim. Ele continuava me encarando como se pudesse despir minha alma só com o olhar.

— Fui informada que deseja rever o menu executivo — sussurrei, contra minha vontade.

Ele não respondeu. Apenas assentiu. Me olhando. Lento.

A resposta era sim.

Mas em Dante Tavares, silêncio sempre dizia mais que palavras, pela forma que o seus olhos percorreram o meu corpo, me fazendo queimar, até o olhar demorado em minha boca,a subida intensa aos meus olhos.

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