As Cicatrizes Também Uivam
NĂŁo dormi naquela noite. Como eu poderia? Meu corpo ainda ardia com o gosto do beijo dele, com a memĂłria de suas mĂŁos descendo pelas minhas costas, com o peso daquela promessa que nĂŁo foi dita em palavras — mas em toques, respirações e silĂŞncios. Estava deitada na mesma cama de antes. A noite havia voltado. O cĂ©u, carregado de nuvens, escondia a lua como se ela prĂłpria hesitasse em nos observar. A floresta sussurrava ao redor da mansĂŁo, como se quisesse me chamar de volta para o ventre selvagem de onde eu vim. Mas eu nĂŁo conseguia fechar os olhos. Na penumbra do quarto, toquei meus prĂłprios lábios como se ainda sentisse os dele ali. NĂŁo era apenas desejo. Era uma sensação mais funda. Como se Rafael, ao me beijar, tivesse ativado algo dentro de mim — algo que Marco se recusou a tocar. Me virei na cama, nua sob os lençóis escuros, e encarei o teto antigo. Uma pintura se espalhava acima de mim: a lua em várias fases, rodeada por lobos em cĂrculo, e uma mulher de cabelos negros no centro, de braços abertos, como se os comandasse todos. Ela se parecia comigo. Arrepios subiram pela minha espinha. Aquilo nĂŁo era coincidĂŞncia. Nada naquela casa era. Levantei. Caminhei atĂ© o espelho antigo perto da lareira. A madeira esculpida tinha runas que eu nĂŁo conhecia, mas que pareciam vibrar sob minha pele. Me encarei. Ainda havia sombra nos meus olhos castanhos, resquĂcio da dor da rejeição. Mas havia algo novo ali tambĂ©m. Algo mais... selvagem. Foi quando senti. O cheiro. Ele. Rafael. Antes mesmo de vĂŞ-lo, meu corpo já sabia. Meus sentidos se esticaram como se quisessem tocá-lo antes de minha pele. Virei lentamente. Ele estava Ă porta, encostado no batente, como se o mundo inteiro esperasse seu comando. Os olhos verdes estavam mais escuros naquela luz, e seus cabelos caĂam levemente sobre a testa, bagunçados, perigosamente tentadores. — VocĂŞ nĂŁo dormiu — disse ele, nĂŁo como pergunta, mas como certeza. Assenti, cobrindo o corpo com o lençol num gesto instintivo. Ele notou, mas nĂŁo comentou. Apenas entrou, devagar. — Seu sangue... desperta — murmurou, se aproximando. — E quando isso acontece, Ă© difĂcil dormir. As Lunas sentem tudo com mais intensidade. — Eu nĂŁo sou Luna — respondi, num sussurro, olhando para o chĂŁo. — Marco me rejeitou. VocĂŞ sabe disso. Ele parou Ă minha frente. Seu dedo ergueu meu queixo, me forçando a encará-lo. — A rejeição de um Alfa nĂŁo define quem vocĂŞ Ă©. — EntĂŁo o quĂŞ define? — rebati, com a voz embargada. — Porque no momento, tudo o que eu sinto Ă© que estou quebrada. Rafael respirou fundo. Seus olhos me analisaram com atenção, como se buscassem algo dentro de mim. — Quebrada... nĂŁo. Marcada. E as marcas, Alice, Ă s vezes sĂŁo portas. — Portas pra quĂŞ? Ele se inclinou, os lábios roçando meu ouvido. — Para um poder que nem mesmo vocĂŞ está pronta para entender. Minha respiração falhou. O corpo reagiu como se aquele sussurro fosse uma ordem. Minhas pernas fraquejaram. — VocĂŞ fala como se me conhecesse antes de tudo isso — disse, num sussurro. — Como se tivesse esperado por mim. Ele se afastou apenas o suficiente para me olhar nos olhos. — E se eu disser que esperei? — retrucou. — Que estive presente quando vocĂŞ nasceu. Que senti sua primeira transformação. Que ouvi seu choro... e seu silĂŞncio. Minha boca se abriu, mas nenhuma palavra saiu. — VocĂŞ Ă© mais do que pensa. Mais do que Marco foi capaz de ver. E agora... vocĂŞ está sob minha proteção. — Isso Ă© o que vocĂŞ quer? Me proteger? Seus olhos arderam. Um brilho antigo. Quase... possessivo. — Quero guiá-la. Quero despertá-la. E, sim... quero protegĂŞ-la do que virá. — Do que virá? Ele hesitou. Um leve endurecimento em seu maxilar. — A rejeição nĂŁo foi natural, Alice. NĂŁo foi apenas orgulho ou capricho de Marco. Foi forçada. AlguĂ©m... interferiu. Meu coração gelou. — Como assim? — Há forças mais antigas do que a prĂłpria alcateia. Forças que dormem na floresta, nos ossos da terra. Algo despertou, e tentou impedir seu vĂnculo com Marco. — Por quĂŞ? — Porque se o vĂnculo tivesse sido selado... vocĂŞ jamais teria me conhecido. E talvez... o que habita dentro de vocĂŞ nunca tivesse acordado. O silĂŞncio caiu entre nĂłs como um vĂ©u pesado. NĂŁo era apenas sobre amor. Nem apenas sobre poder. Era sobre destino. E alguĂ©m — ou algo — estava tentando interferir no meu. Meus olhos se encheram de perguntas. Mas Rafael apenas sorriu, inclinando-se para me beijar a testa, um gesto Ăntimo, carinhoso... e profundamente protetor. — Descanse agora. AmanhĂŁ, vocĂŞ começa a entender. E entĂŁo ele saiu, como se cada palavra tivesse sido medida. Mas uma coisa era certa: A histĂłria entre nĂłs — Marco, Rafael e eu — estava longe de ser sĂł um triângulo de dor e desejo. Era uma guerra de escolhas, marcas… e segredos antigos.