Mundo de ficçãoIniciar sessãoCapítulo 6 — O olhar do Guardião
Então, o país silenciou.
Por um instante, o Éter — o tecido fundamental da existência, a substância invisível que conecta todos os planos, seres e vontades — pareceu hesitar, como se o próprio ar tivesse esquecido o sentido de se mover.
O impacto da Reversão Temporal de Yaskara Borh sobre a relíquia lendária atravessou o véu entre os planos como uma onda dourada — invisível, mas sentida por tudo que ainda respirava.
As linhas de energia que sustentavam o equilíbrio entre o mundo físico e o espiritual vibraram, desordenadas, rasgando a harmonia sutil que o Guardião do Véu preservava há milênios.
Nos templos antigos, runas de contenção se acenderam sem toque humano.
Lâminas de Éter escaparam de altares esquecidos, cortando o ar com cantos agudos — gritos cristalinos de um mundo em desalinho.
Nas ruas, pessoas comuns sentiram enjoos súbitos, vertigens, sonhos quebrados em plena vigília.
Magos de todas as ordens pararam o que faziam: suas zonas espirituais tremiam, distorcidas, como se o tempo tivesse perdido a coragem de seguir em linha reta.
E, nas profundezas do plano etéreo, o Guardião despertou.
A Consciência do Éter, conhecida apenas como Aetharion, abriu os olhos — dois espelhos translúcidos refletindo eras sobrepostas.
Sua forma, feita de luz e símbolos móveis, se ergueu do núcleo cristalino do Véu.
Por um breve segundo, o equilíbrio entre os mundos se partiu como vidro sob pressão.
— “O fluxo se partiu.” — murmurou Aetharion, a voz ecoando sem som. — “Uma vontade mortal alcançou o que era intocado.”
Imagens cruzaram o plano: o instante em que Yaskara reverteu o tempo; o fragmento de Amaruq, o Soberano das Distorções, sendo apagado do tecido da existência; e a fratura invisível que isso deixou nas margens do Éter.
— “A existência de Amaruq foi desfeita…” — completou o Guardião. — “E o medo, outrora contido, busca um novo corpo para existir.”
Em resposta, o país inteiro pareceu reagir.
Os Ecos Etéreos menores — espíritos sem vontade — começaram a desaparecer em sequência, sugados por fendas de energia instável.
Nas capitais, os detectores de Éter apitaram em descompasso; na costa, o mar recuou metros antes de retornar em ondas de espuma luminosa; no interior, campos inteiros floresceram e murcharam em questão de segundos.
E, enquanto tudo vibrava entre o existir e o deixar de ser, Aetharion ergueu o olhar para o mundo mortal.
Sua expressão era calma, mas carregava o peso de quem compreende o inevitável.
— “A Vontade humana ousou curvar o tempo…” — disse. — “Agora, o Éter responderá.”
A luz ao redor dele pulsou, e o Véu voltou a se fechar, costurando-se lentamente como uma ferida.
Mas o dano permanecia.
O Guardião havia despertado — e o mundo, ainda que não soubesse, nunca mais seria o mesmo.
Muito longe dali, o eco desse despertar atravessou o Éter.
O ar mudou — um instante de hesitação entre o som e o silêncio.
Foi então que Voss ergueu o olhar.
O Nóumena se curvou, por um instante, como se o próprio espaço respirasse de medo.
Ele soube.
Algo havia tocado o Éter.
E o motivo estava diante dele, sorrindo.
— Por que não? Afinal, o guia é bem simpático… e o hotel é mesmo perto daqui.
Enquanto caminhavam, ela atendeu quatro ligações seguidas da organização que a supervisionava.
Ao encerrar a última, soltou um suspiro cansado.
— Seu pessoal não liga para você? — perguntou, meio rindo. — Isso parece bom. Será que ficarei em paz aqui?
Voss arqueou uma sobrancelha, o tom leve, mas com uma curiosidade que soou mais profunda do que o esperado.
— “Meu pessoal”? — repetiu, arqueando uma sobrancelha, claramente intrigado — Ah… não tenho ninguém me ligando o tempo todo, se é isso que você quer saber. — Soltou uma risada baixa, quase como se estivesse se divertindo com a ideia. — Então, sim… aqui você provavelmente terá alguns momentos de paz.
— Chegamos. — avisou ela quando pararam diante do hotel mais luxuoso da região.
Voss soltou uma risada baixa, balançando a cabeça antes de se endireitar e acompanhá-la.
O saguão era amplo, decorado em tons claros; garçons deslizavam entre os sofás brancos servindo drinques que pareciam brilhar sob a luz difusa.
— Você me espera ali? — perguntou ela, indicando um dos sofás.
— Pode deixar, vou esperar aqui. — respondeu, num tom despreocupado. — E fique tranquila: pelo menos até o seu primeiro dia de aula ninguém vai te bombardear com ligações… a não ser que eu permita.
Ela sorriu, e seguiu para o elevador.
Voss se recostou no sofá, cruzando as pernas com elegância preguiçosa.
Observou os garçons por um instante, depois seus olhos voltaram para ela, que se afastava em silêncio pelo reflexo do espelho polido das portas.
Um sorriso lento, provocador, surgiu-lhe nos lábios.
— Então, Borh… — murmurou. — Esse é o seu nível de “território”?
O olhar azul-prateado percorreu o saguão com preguiça estudada.
Tudo ali — o brilho das luzes, o silêncio elegante — parecia responder a ela.
“Controla o tempo… e o ambiente também”, pensou, o sorriso crescendo de leve.
Poucos minutos depois, quando a viu retornar, ele levantou-se do sofá com tranquilidade, esticando os braços de forma preguiçosa.
O sorriso brincalhão ainda lhe dançava nos lábios.
— Então, professora Yaskara… pronta para conhecer sua nova rotina?
— Eu ainda não sei como reagir a isso. — respondeu, rindo baixinho, referindo-se ao novo título.
O riso, porém, não durou.
O brilho em seus olhos pareceu vacilar por um instante — quase imperceptível.
Yaskara ergueu o olhar para o grande relógio do saguão, acompanhando o movimento firme do ponteiro.
Cada segundo marcava uma pressão silenciosa contra o corpo — como se o tempo, que sempre obedecera à sua vontade, começasse agora a lhe cobrar o preço.
Respirou fundo, buscando disfarçar o peso que sentia nas articulações e na mente.
Se perdesse o ritmo, o colapso viria antes de chegar à escola.
— Espero que o caminho até lá seja rápido. — disse, forçando um sorriso leve.
Trazia uma mala média de rodinhas em tom rosado pastel e, no lugar dos saltos, calçava sapatos confortáveis, porém elegantes.
— Te fiz esperar muito?
— Não. — respondeu ele, balançando a cabeça. — Você não me fez esperar nada.
O olhar dele pousou brevemente sobre a mala e os sapatos — um interesse rápido, quase imperceptível. Não comentou nada, mas registrou o contraste entre o cuidado e a praticidade dela.
Yaskara virou-se para a entrada do hotel.
— Aqui do lado tem um ponto de táxi. Podemos tomar um. Eu pago.
— Táxi é uma boa ideia. — concordou, acompanhando-a com o mesmo tom leve.
— E quanto a pagar… tudo bem. Mas, pelo visto, eu vou te dever uma aula sobre como sobreviver a múltiplos grupos de “velhotes” sem enlouquecer.
O sorriso provocador retornou, brincando com a situação enquanto ele segurava a porta do táxi para ela.
Ao lembrar dos velhotes, ela teve um calafrio.
— Que escolha eu tenho? — disse, em tom divertido, já dentro do táxi.
Depois de dar o endereço ao motorista, voltou-se para ele. — Então, professor Voss… há quanto tempo dá aulas?
Ele recostou-se no banco, o braço apoiado no encosto, o olhar tranquilo — aquele meio sorriso de quem observa mais do que fala.
— Ah… faz um bom tempo — respondeu, o tom leve, quase como quem conta algo trivial. — Uns… vários anos, desde que percebi que ensinar podia ser tão interessante quanto lutar.
Arqueou uma sobrancelha, lançando-lhe um olhar de soslaio.
— Mas não se engane. — cruzou os braços sobre o peito. — Ensinar não é só sobre transmitir conhecimento. É sobre manter adolescentes vivos, impedir que causem caos… e, de vez em quando, lidar com uns Desastres do Eco teimosos pelo caminho.
O sorriso dele cresceu um pouco enquanto observava o movimento da cidade pela janela.
— Então, professora Borh… — murmurou. — Preparada para enfrentar a essa combinação mortal enquanto ainda tenta ensinar algo útil?
— Estou mais preocupada em como ensiná-los a ficarem vivos respeitando seus limites e não subestimar seus oponentes. — deu uma olhada de lado para ele, o tom calmo, mas a intenção clara. — A vida de um mago não é fácil, por mais poderoso que ele seja. — Uma breve pausa. — Fora que, sempre é importante ter alguém em quem se possa confiar. — disse, desviando o olhar para a janela.
O reflexo do sol riscou seu rosto, mas o que se via em seus olhos não era contemplação — era cálculo.
Cada minuto que passava pesava como uma maré invisível, e ela sentia o corpo responder em lentidão, como se o tempo dentro dela se esgotasse em silêncio.
Fingiu estar apenas observando a paisagem, quando, na verdade, media o intervalo entre um suspiro e outro, temendo o momento em que o próximo não viria.
Voss inclinou-se levemente, observando-a em silêncio. O sorriso ainda estava ali, mas a expressão nos olhos mudou — mais atenta, menos provocadora.
— Você não tinha ninguém, tinha? — perguntou Yaskara, sem ironia, apenas constatação. — Quando enfrentou Amaruq.
Ele desviou o olhar para a rua além do vidro, os dedos tamborilando de leve no banco.
— Ninguém de confiança. — respondeu enfim, a voz tranquila, quase indiferente. — Às vezes, é mais fácil lutar contra um monstro do que esperar que alguém apareça pra ajudar.
Um breve silêncio. Depois, o sorriso voltou, preguiçoso.
— Mas não se preocupe, professora. — disse, com o tom leve recuperado. — Eu costumo sobreviver bem à solidão.
— E, até onde sei, o Éter ainda não reclamou oficialmente da minha companhia.
Yaskara soltou um suspiro breve, entre o cético e o divertido, antes de voltar a encarar a janela.
— Talvez ele só esteja te dando tempo. — murmurou.
Voss inclinou a cabeça de leve, um sorriso quase imperceptível se formando.
— Pode ser. — disse, num tom mais baixo. — E você? — perguntou então, sem ironia, apenas curiosidade genuína. — Tem alguém em quem confia?
Ela demorou a responder.
— Tenho o tempo. — disse por fim, num tom que soava mais como resignação do que como metáfora.
Voss riu baixo, olhando pela janela.
— O tempo? — repetiu, pensativo. — É um confidente traiçoeiro. Ele ouve tudo, mas nunca guarda segredo.
Ela virou o rosto em direção a ele, um meio sorriso aparecendo.
— Ainda assim, é o único que não me decepcionou.
— Talvez porque ainda não te entendeu. — retrucou, com aquele humor sutil que sempre beirava o filosófico. — Ou porque está com medo de você.
Ela arqueou uma sobrancelha, sem desviar o olhar.
— O tempo não sente medo.
Voss deu de ombros, um brilho malicioso nos olhos.
— Todos sentem. — murmurou, a voz baixa, quase um sussurro. — Até o espaço, quando alguém o desafia.
O silêncio que se seguiu não foi desconfortável — apenas denso, carregado da sensação de que algo invisível entre eles havia mudado de lugar.
Quando finalmente chegaram a Academia Arcana de Estudos Etéricos, o pátio estava tomado por uma mistura improvável de pessoas: funcionários da instituição, mensageiros e representantes da Organização que a supervisionava.
A confusão parecia crescer a cada segundo — vozes se sobrepunham em explicações, papéis circulavam, e ninguém parecia realmente saber quem estava no comando.
— Ah, pela Vontade… — murmurou Yaskara, parando na calçada, completamente imóvel por um instante. O olhar percorria o aglomerado de uniformes e crachás. — Se me virem aqui, não conseguirei chegar ao dormitório tão cedo. — disse, tentando manter o tom leve, mas a aflição escapou na última palavra.
Deu um passo para trás, o corpo instintivamente procurando se esconder atrás de Eiran.
— E eu nem sei onde é. — completou, mais baixo, como se falasse consigo mesma.







