— Dona Gertrudes não vai junto? — perguntei, olhando pela janela, tentando encontrar aquela silhueta familiar entre as pessoas que ainda circulavam pela festa.— Não — Zeca respondeu seco, sem nem desviar os olhos da estrada.— Ué… por quê?— Vai ficar ajudando o pessoal a desmontar as barracas, como sempre — ele deu de ombros, como se fosse óbvio. — Dona Ge conhece cada um aqui, tem dedo em tudo.Assenti devagar, absorvendo a resposta. Claro que ela ficaria. Aquela mulher parecia ser a alma daquele lugar. Sempre disposta, sempre presente. E, por algum motivo, aquilo me deu um pequeno alívio. Eu não teria que encarar o silêncio desconfortável do carro sozin
O som das batidas na porta me tirou de um dos meus raros sonhos bons — aquele em que eu tinha uma casa na praia, uma máquina de café que nunca acabava e nenhum homem carrancudo me dizendo o que fazer.— Alice? — era a voz inconfundível de Dona Ge. — Tá acordada, menina?— Agora tô — murmurei, me espreguiçando como um gato preguiçoso num domingo. Caminhei até a porta com os cabelos parecendo um ninho de pássaro rebelde.Ao abrir, lá estava ela: de avental, chinelo e um brilho de missão no olhar.— Bom dia, flor do dia! — disse animada, como se não fosse antes das oito da manhã. — Preciso da sua ajuda.— Já começou mal, hein — brinquei, encostando na porta. — Toda vez que alguém começa com “preciso da sua ajuda”, é uma cilada.Ela riu, sem nem fingir que ia negar.— A escola aqui do bairro vai fazer uma feirinha literária no sábado. A diretora quer trazer algo diferente esse ano. Daí pensei: quem melhor pra dar uma força do que nossa escritora de São Paulo?— Dona Ge, com todo o carinho,
A escola municipal de Monte Verde não era grande — pelo contrário, mal cabia todas as turmas nos poucos corredores pintados de amarelo e azul. Mas havia algo ali que me arrebatou logo ao cruzar o portão: vida. Em cada riso de criança correndo pelos corredores, em cada desenho torto nas paredes, em cada plantinha que alguém, com carinho, cuidava na entrada.E ali estava eu, com um cartaz de galinha de tutuzinho nos braços e o coração disparado.Dona Gertrudes me apresentou para a diretora como "a moça escritora de São Paulo", e antes que eu pudesse corrigir que fazia tempos que não escrevia nada de verdade, já estava sendo levada até uma pequena sala repleta de olhinhos curiosos.As crianças me olharam como se eu t
O sol já começava a se esconder atrás das montanhas quando estacionamos em frente ao chalé. A luz dourada atravessava as árvores, lançando sombras compridas sobre a varanda. Era o tipo de fim de tarde que dava vontade de guardar num potinho. Zeca desligou o motor e ficamos um segundo em silêncio, ainda dentro da caminhonete. Eu sentia minha pele arrepiar, mas não era por causa da brisa fria que começava a soprar — era ele. A maneira como o silêncio entre nós não era mais desconfortável, e sim carregado de algo que eu ainda não sabia nomear, mas sentia. Forte.— Obrigada por hoje — falei, virando o rosto pra ele, e percebi que ele também já me olhava. De novo, aquela sensação de que havia algo prestes a acontecer.— Eu que agradeço — respondeu, mais baixo do que o normal. — Faz tempo que um dia não vale tanto a pena.Ficamos nos encarando por tempo suficiente para que o ar ficasse espesso, como se o mundo ao redor estivesse esperando por um desfecho. Quando ele se inclinou, um pouco,
O sol já despontava alto no dia seguinte quando o som da batida na porta me fez levantar da cadeira onde estava sentada, perdida nos meus próprios pensamentos. Olhei pela janela e vi Lucas, de capacete nas mãos, com um sorriso de canto de boca que parecia ser o prelúdio de algo inesperado.— Oi — ele disse, com aquele tom de quem estava prestes a puxar uma conversa casual. — Você não está muito ocupada, né?Eu não sabia bem o que esperar, mas antes que eu pudesse responder, ele continuou:— Estava pensando... que tal dar uma volta? Eu conheço um lugar aqui por perto, uma cachoeira. Fica bem isolada, você vai gostar.Parei por um momento, surpresa, mas ao mesmo tempo, uma parte de mim sentiu uma leve animação tomar conta. Eu não esperava um convite tão direto, e por mais que ainda estivesse lidando com as confusões do dia anterior, a ideia de sair de casa e ver algo novo soava boa.— Uma cachoeira? — perguntei, com a sobrancelha arqueada. — Acho que nunca estive numa aqui.Lucas deu um
A trilha que levava até a cachoeira era estreita, cercada de árvores altas que filtravam a luz do sol, desenhando manchas douradas pelo chão. Lucas estacionou a moto na entrada e, animado, me ofereceu a mão para descer.— Preparada para uma caminhada? — ele perguntou, sorrindo de um jeito travesso.— Isso é pegadinha, né? — brinquei, descendo da moto com cuidado. — Você quer ver se eu rolo ladeira abaixo?Ele soltou uma gargalhada gostosa, daquelas que fazem a gente rir junto sem perceber.— Relaxa, turista, é caminho fácil. E se você cair, eu prometo que filmo pra posteridade.Revirei os olhos, mas acabei rindo tamb&
Frustrada.Irritada.Com ódio.Gritei, enterrando o rosto no travesseiro.O som abafado não foi suficiente para expressar toda a minha revolta, então rolei na cama e arremessei o travesseiro contra a parede. Claro que ele caiu no chão de um jeito pateticamente inofensivo, o que só me deixou ainda mais irritada.— Como eu pude ser tão burra?! — esbravejei, sentando na cama e bagunçando ainda mais o cabelo que já estava um caos.Respirei fundo, tentando me acalmar. Contar até dez? Esquece. Se contar até dez funcionasse, eu já estaria zen igual um monge tibetano. Mas não. Eu estava a um passo de tacar o celular na parede e me autoexilar em uma montanha distante, longe da sociedade e dos idiotas que habitam nela.Levantei de um pulo, marchando pelo quarto como um animal enjaulado. Cada passo ecoava minha fúria.O motivo? Simples. Eu tinha passado dias, semanas, meses construindo uma ilusão. Alimentando uma esperança idiota baseada em nada mais que mensagens bonitinhas, emojis fofos e prom
Chego em casa, a determinação latejando em cada célula do meu corpo. Mudar de vida. Era isso. Nada mais de rotina, nada mais de bem bom. Bem bom era o código para o meu estado de conforto paralisante, onde maratonava séries sem graça e pedia a mesma pizza de sempre, todas as sextas.Enquanto eu saia do elevador pronta para entrar na minha cobertura, já podia sentir o cheiro familiar do meu apartamento: uma mistura de sachê de lavanda e resignação. Abro a porta e jogo minha bolsa no sofá, que geme sob o peso extra. Olho ao redor. As paredes cor de creme pareciam me encarar, cúmplices silenciosas da minha vida insossa.— Chega! — eu digo em voz alta, o som ecoando no espaço. — Alice 2.0 está na área.O problema é: quem era essa Alice 2.0? Eu não tinha a menor ideia. Sabia apenas que precisava ser alguém mais... vibrante. Alguém que dissesse sim para o inesperado, que arriscasse um tropeção em vez de ficar sentada no sofá, colecionando migalhas de biscoito.Talvez devesse começar com al