As ruas de paralelepípedo de Monte Verde pareciam ter ganhado vida própria. Fitas coloridas cruzavam o alto das vielas, balançando com a brisa leve do fim de tarde. Pequenas bandeirinhas de papel tremulavam entre os postes de luz, formando um céu vibrante sobre nossas cabeças. O cheiro de comida tomava conta do ar, uma mistura deliciosa de milho assado, churros, espetinhos e um leve aroma adocicado de quentão, mesmo que a noite ainda não tivesse chegado.As barraquinhas se alinhavam lado a lado, cada uma mais convidativa que a outra. Algumas exibiam prateleiras recheadas de doces caseiros, enquanto outras tinham senhorinhas vendendo artesanato local — toalhinhas bordadas, colchas de tricô e pequenas esculturas de madeira. Ao fundo, um palco improvisado feito de tábuas rústicas já estava montado, com caixas de som posicionadas e um grupo de músicos ajeitando seus instrumentos. Vi um sanfoneiro testando os primeiros acordes, e soube que logo a festa estaria completa.A praça central era
Nos perdemos entre as barraquinhas, a música vibrando pelos paralelepípedos da praça, e a cachaça ainda zunindo levemente na minha cabeça. Era como estar dentro de um daqueles livros de romance de interior, só que com sapatos desconfortáveis e o cabelo já começando a armar por causa da umidade.— Quer pamonha, moça? — uma senhora me ofereceu com um sorriso tão gentil que, se eu dissesse não, provavelmente desrespeitaria três gerações da família dela.Aceitei. E logo em seguida, um copinho de quentão. E depois um pedacinho de bolo de fubá. E foi assim que descobri que em festas de cidade pequena, você não anda — você come, e muito.Zeca desapareceu por uns minutos, e confesso que senti falta de sua presença irritante. Ele tinha aquele jeito de “não ligo pra nada”, mas andava como se conhecesse cada centímetro daquela praça — e, provavelmente, conhecia. Quando voltou, trazia duas cadeiras de plástico equilibradas num braço.— Achei que ia desmaiar em pé — ele falou, me entregando uma e
Zeca não respondeu. Apenas estendeu a mão com naturalidade para Letícia, e ela aceitou como se fosse parte de uma coreografia que já conhecia bem. A cena se desenrolou diante dos meus olhos quase em câmera lenta: ele guiando-a até a pista de dança, os dois se posicionando com familiaridade, como quem já havia feito aquilo muitas vezes antes.E então começaram a dançar.Não era só técnica — era sintonia. Os passos de Zeca eram firmes, seguros, e Letícia o acompanhava com uma leveza que parecia ensaiada. Eles se encaixavam de um jeito que me incomodou mais do que eu gostaria de admitir.Fiquei ali, sentada, fingindo que observava a decoração da festa, as luzinhas penduradas nas árvores, o movimento das pessoas nas barraquinhas… mas meus olhos voltavam para eles, como se minha curiosidade tivesse vontade própria.E foi aí que senti. Uma pontinha de ciúmes.Ridículo.Balancei a cabeça discretamente, como se tentasse espantar o pensamento. Não fazia sentido. Eu mal conhecia Zeca. Ele era g
Acompanhei Lucas até onde a moto estava estacionada, ainda não totalmente convencida de que aquilo era uma boa ideia. A cada passo, meu cérebro repetia o mesmo mantra: Você vai subir numa moto. Com um estranho. À noite. No meio do interior. Ótimo enredo para um suspense — e não o tipo de romance que eu estava tentando escrever.Parei diante da moto, os braços cruzados. Olhei para ela como quem encara uma fera selvagem. Depois, olhei para ele. Sorridente, tranquilo demais para alguém que pretendia equilibrar duas pessoas numa máquina de duas rodas.— Você ainda tá com essa cara de quem vai fugir — ele disse, parando ao meu lado. — Relaxa, moça. A dona Gertrudes já me recomendou. E ela não recomenda qualquer um, viu?— Eu sei… — suspirei. — Mas eu não te conheço.Ele sorriu, como se já esperasse por isso.— Justo. Então deixa eu me apresentar direito. — Estendeu a mão. — Lucas Andrade. Sou o veterinário da região. Se tiver algum bicho doente, eu sou quem a cidade chama.Apertei a mão de
— Dona Gertrudes não vai junto? — perguntei, olhando pela janela, tentando encontrar aquela silhueta familiar entre as pessoas que ainda circulavam pela festa.— Não — Zeca respondeu seco, sem nem desviar os olhos da estrada.— Ué… por quê?— Vai ficar ajudando o pessoal a desmontar as barracas, como sempre — ele deu de ombros, como se fosse óbvio. — Dona Ge conhece cada um aqui, tem dedo em tudo.Assenti devagar, absorvendo a resposta. Claro que ela ficaria. Aquela mulher parecia ser a alma daquele lugar. Sempre disposta, sempre presente. E, por algum motivo, aquilo me deu um pequeno alívio. Eu não teria que encarar o silêncio desconfortável do carro sozin
O som das batidas na porta me tirou de um dos meus raros sonhos bons — aquele em que eu tinha uma casa na praia, uma máquina de café que nunca acabava e nenhum homem carrancudo me dizendo o que fazer.— Alice? — era a voz inconfundível de Dona Ge. — Tá acordada, menina?— Agora tô — murmurei, me espreguiçando como um gato preguiçoso num domingo. Caminhei até a porta com os cabelos parecendo um ninho de pássaro rebelde.Ao abrir, lá estava ela: de avental, chinelo e um brilho de missão no olhar.— Bom dia, flor do dia! — disse animada, como se não fosse antes das oito da manhã. — Preciso da sua ajuda.— Já começou mal, hein — brinquei, encostando na porta. — Toda vez que alguém começa com “preciso da sua ajuda”, é uma cilada.Ela riu, sem nem fingir que ia negar.— A escola aqui do bairro vai fazer uma feirinha literária no sábado. A diretora quer trazer algo diferente esse ano. Daí pensei: quem melhor pra dar uma força do que nossa escritora de São Paulo?— Dona Ge, com todo o carinho,
A escola municipal de Monte Verde não era grande — pelo contrário, mal cabia todas as turmas nos poucos corredores pintados de amarelo e azul. Mas havia algo ali que me arrebatou logo ao cruzar o portão: vida. Em cada riso de criança correndo pelos corredores, em cada desenho torto nas paredes, em cada plantinha que alguém, com carinho, cuidava na entrada.E ali estava eu, com um cartaz de galinha de tutuzinho nos braços e o coração disparado.Dona Gertrudes me apresentou para a diretora como "a moça escritora de São Paulo", e antes que eu pudesse corrigir que fazia tempos que não escrevia nada de verdade, já estava sendo levada até uma pequena sala repleta de olhinhos curiosos.As crianças me olharam como se eu t
O sol já começava a se esconder atrás das montanhas quando estacionamos em frente ao chalé. A luz dourada atravessava as árvores, lançando sombras compridas sobre a varanda. Era o tipo de fim de tarde que dava vontade de guardar num potinho. Zeca desligou o motor e ficamos um segundo em silêncio, ainda dentro da caminhonete. Eu sentia minha pele arrepiar, mas não era por causa da brisa fria que começava a soprar — era ele. A maneira como o silêncio entre nós não era mais desconfortável, e sim carregado de algo que eu ainda não sabia nomear, mas sentia. Forte.— Obrigada por hoje — falei, virando o rosto pra ele, e percebi que ele também já me olhava. De novo, aquela sensação de que havia algo prestes a acontecer.— Eu que agradeço — respondeu, mais baixo do que o normal. — Faz tempo que um dia não vale tanto a pena.Ficamos nos encarando por tempo suficiente para que o ar ficasse espesso, como se o mundo ao redor estivesse esperando por um desfecho. Quando ele se inclinou, um pouco,