Mundo ficciónIniciar sesiónKael entrou como se já conhecesse a casa. O capuz escorria água da chuva, os olhos prateados analisavam cada canto com precisão. Ele não parecia cansado, nem assustado. Parecia treinado.
E parecia perigoso.
Lyria deu dois passos para trás.
— Não chegue perto — o pai dela avisou, posicionando-se entre eles.
Kael nem olhou para ele.
— Precisamos ir. Agora.
Lyria apertou o medalhão contra o peito, sentindo a vibração aumentar.
— Eu não vou a lugar nenhum — ela disse. — Você apareceu do nada e entrou na minha casa como se fosse dono do mundo. Explica primeiro.
Kael finalmente a encarou com foco total.
— Explicar vai demorar tempo que vocês não têm.
A avó cruzou os braços.
— O vale já sentiu, não é?
Kael assentiu.
— A barreira está fina. Eles estão vindo. E quando chegarem, não vão perguntar nada. Vão levar o que vieram buscar.
— E o que seria isso? — Lyria rebateu, irônica, mas a mão tremia.
Kael deu um passo em direção a ela. O pai dela bloqueou de novo.
— Minha filha não vai a lugar nenhum.
Kael respirou fundo.
— Seu pai não pode impedir o que está acontecendo. Ninguém pode. Ela… — ele apontou para Lyria — …foi encontrada. Isso basta para começar a caça.
“Encontrada.”
— Encontrada por quem? — ela perguntou.
Kael respondeu sem hesitar:
— Por todos que a querem morta. E por todos que a querem viva. Ela não pode ficar no meio.
Lyria sentiu o chão girar.
— Eu? — ela perguntou, sem acreditar. — Por quê? Eu sou só… eu sou só uma garota normal!
Kael soltou um riso curto, quase sem humor.
— Não. Você não é.
A avó tocou o ombro de Lyria.
— O medalhão reacendeu, filha. Era questão de tempo.
Lyria balançou a cabeça.
— Ninguém está dizendo o que isso significa. Ninguém está explicando nada. Eu estou cansada disso.
Kael suspirou, tirou o capuz e revelou o rosto.
Ele era jovem. Mais jovem do que ela pensava. Talvez um ano mais velho, no máximo. Mas os olhos… os olhos não tinham idade. Eram frios, calculados, e ao mesmo tempo carregavam um cansaço enorme.
— Eu vou falar claro — ele disse. — Se você ficar aqui, o vale vai virar um campo de batalha. Pessoas vão morrer. Inclusive você. Talvez primeiro você.
— E por que você se importa? — ela cortou. — Eu nem te conheço.
Kael a observou longamente antes de responder.
— Porque eu recebi uma ordem há muitos anos — disse ele. — Encontrar você. E garantir que chegue viva ao outro lado.
Lyria riu, incrédula.
— Outro lado? O que isso quer dizer? Outro país? Outra cidade?
— Outro mundo — Kael respondeu.
Lyria ficou em silêncio.
O pai ficou pálido. A avó não pareceu surpresa.
Kael continuou:
— O medalhão é a chave. Ele abriu e fechou o portal há dezoito anos. E agora despertou de novo. Isso significa que o limite entre os mundos está fraco. E os Sombr… — ele parou, corrigindo — …os caçadores sentiram.
A casa tremeu.
Um copo caiu da prateleira e quebrou no chão.
O pai arregalou os olhos.
— Já estão aqui?
Kael olhou em direção à porta.
— Ainda não. Mas estão perto.
Lyria sentiu o corpo gelar.
— E o que você espera que eu faça?
— Vir comigo — ele respondeu. — Agora.
— Para onde?
— Para onde você pertence.
Ela deu uma risada nervosa.
— Eu pertenço aqui. Nesta casa. Com meu pai. Com a minha avó.
Kael não piscou.
— Não mais.
A avó tocou o braço de Lyria, firme.
— Ele está dizendo a verdade.
— Vocês sabiam? — Lyria perguntou, a voz falhando. — Vocês sabiam de tudo isso e nunca me contaram?
— Tentamos te proteger — o pai disse. — Você era só um bebê. E depois… era fácil fingir que nada disso existia.
A avó completou:
— Mas você sempre soube que era diferente, Lyria. Sempre sentiu. O vale te respondeu a vida toda.
Lyria queria negar. Queria dizer que tudo aquilo era absurdo. Mas o medalhão queimava contra a pele. E ela lembrava da luz. Da figura na ponte. Do nome que ele disse.
Kaelith.
Kael a observava como se soubesse exatamente o que ela estava pensando.
— A decisão precisa ser agora — ele disse. — Ou eu te levo viva. Ou eles levam você do jeito deles.
O pai levantou a voz:
— Você não vai arrancá-la daqui à força!
Kael virou para ele.
— Eu não. Eles.
A casa tremeu de novo. Mais forte. As janelas vibraram.
A avó correu até o altar pequeno no canto da sala e acendeu uma vela, rezando palavras que Lyria não reconhecia.
Kael pegou Lyria pelo braço com firmeza.
Ela puxou de volta.
— Não me toca!
Ele não soltou.
— Se eu soltar agora, você morre.
O chão vibrou. Um som grave ecoou do lado de fora — como um rosnado profundo misturado a vento.
Kael olhou para a porta e falou baixo:
— O tempo acabou.
Lyria respirou rápido, o peito apertado.
— Eu… eu não sei quem você é. Eu não sei o que você quer…
— Eu quero te manter viva — ele disse. — O resto, você descobre do outro lado.
A avó gritou:
— Vai com ele!
As luzes da casa piscaram. Um estalo enorme soou na varanda.
Algo estava tentando entrar.
Lyria fechou os olhos.
Um segundo depois, os abriu — e falou:
— Eu vou.
Kael apertou a mão dela e a puxou em direção à porta dos fundos.
O pai tentou segui-los.
Kael apenas disse:
— Se você sair, eles vão te ver. Fica e protege a casa.
Foi cruel, mas honesto.
O pai parou. Os olhos dele se encheram de lágrimas.
— Volta pra mim, filha — disse.
Lyria quis responder. Mas o som de garras arranhando a parede externa cortou o ar.
Kael puxou-a com mais força.
Eles correram pela cozinha, atravessaram a porta dos fundos e entraram na escuridão do vale.
Atrás deles, algo rugiu.
E a caça começou.







