Mundo ficciónIniciar sesiónA noite estava tão silenciosa que Lyria ouviu o próprio coração enquanto atravessava a ponte. A madeira rangia sob seus pés, e o vento gelado cortava o rosto como lâmina. Ela apertou o casaco contra o corpo e acelerou. Estava tarde, e o vale sempre parecia diferente depois do último sino da igreja.
Diferente… e estranho.
O terceiro degrau rangeu mais alto do que o normal. Ela parou, olhando para trás por instinto. Nada. Só escuridão e o reflexo fraco da lua na água.
— Para com isso, Lyria — murmurou para si mesma. — O vale é só um vale.
Tentou convencer o corpo, mas o arrepio não passou.
Quando deu o próximo passo, sentiu — de novo — a sensação de estar sendo observada. Não era medo vazio. Era algo físico, como uma pressão nas costas, um aviso.
O telefone vibrou no bolso.
Mensagem do pai:
Anda. A ponte não é lugar pra ficar parada a essa hora.
Ela revirou os olhos e guardou o celular, mas caminhou mais rápido.
Foi quando sentiu.
Um calor repentino contra o peito. Bem no centro.
Ela levou a mão ao local e encontrou a corrente.
O medalhão.
Aquele maldito medalhão que ela nem lembrava de ter colocado quando saíra para estudar naquela tarde.
A pedra esquentou. Depois pulsou. Um brilho fraco atravessou o tecido da blusa.
— Ei… para com isso — ela resmungou, apertando o pingente entre os dedos.
Mas a luz aumentou.
Uma explosão curta, prateada, iluminou a ponte inteira por menos de um segundo — mas foi o suficiente para revelar que ela não estava sozinha.
Uma figura parada no fim da ponte.
Alta. Imóvel. Ombros largos. Capuz cobrindo parte do rosto.
Lyria congelou.
O medalhão tremeu na mão dela.
— Quem está aí? — ela chamou, a voz mais firme do que se sentia.
A figura não respondeu. Não se moveu. Apenas… ficou ali. Como se estivesse esperando.
A garganta dela secou.
O vento parou. Literalmente.
O vale ficou completamente mudo.
— Lyria! — o pai gritou de longe. — Agora!
Ela piscou. O som do mundo voltou. A água corria, o vento voltou a soprar, folhas bateram umas nas outras.
Mas a figura tinha desaparecido.
Sumiu.
Lyria correu até a outra margem sem olhar para trás.
O pai já estava na varanda, de braços cruzados.
— Tá demorando pra quê? — ele reclamou, puxando-a para dentro. — Eu te disse pra não ir estudar tão tarde.
— Pai, tinha alguém na ponte — ela disse, ainda ofegante. — Alguém parado. Me olhando.
Ele travou por meio segundo. Quase imperceptível. Mas ela viu.
— Deve ter sido um turista perdido — respondeu rápido demais. — O povo vive entrando onde não conhece.
— Pai, ninguém some daquele jeito! — ela insistiu. — Um segundo estava ali, no outro… nada.
A avó apareceu na porta da cozinha.
— Fecha a porta — ela ordenou.
O pai obedeceu sem discutir. Enganchou o trinco com força.
Lyria franziu o cenho.
— Vocês estão… estranhos.
A avó encarou o peito dela.
— O que tem aí?
Lyria instintivamente cobriu o medalhão com a mão.
— Nada. É só um colar que encont—
A velha atravessou a sala mais rápido do que alguém da idade dela deveria conseguir.
— Mostra.
Lyria hesitou. Mas o medalhão pulsou de novo, como se respondesse à avó.
Ela puxou a corrente.
O silêncio que se seguiu foi pesado.
O pai empalideceu. A avó deu um passo para trás. E pela primeira vez na vida, Lyria viu um medo real nos olhos dos dois.
— Onde você pegou isso? — o pai perguntou, a voz baixa.
— Apareceu no meu quarto hoje de manhã — ela respondeu. — Eu pensei que era alguma lembrança da mamãe que vocês tinham guardado. Eu—
— Voltou? Como assim voltou? — Lyria riu nervosa. — Vocês dois enlouqueceram?
A avó ignorou.
— Desde que horas isso está com você?
— Desde cedo.
— E brilhou agora?
Lyria assentiu, sem coragem de mentir.
— Na ponte — disse. — Foi forte. Uma luz prateada. E depois aquela pessoa…
A avó e o pai trocaram um olhar grave.
— Ele achou ela — a avó murmurou.
Antes que Lyria pudesse perguntar o que aquilo significava, três batidas firmes soaram na porta.
As três ao mesmo tempo prenderam a respiração.
O pai caminhou devagar até a janela, levantou a cortina só o suficiente para ver lá fora — e empalideceu mais ainda.
— Não abre — ele disse. — Não abre de jeito nenhum.
— Quem é? — Lyria sussurrou.
A avó respondeu antes do pai.
— O guardião.
A porta bateu outra vez.
— Abra — disse uma voz masculina. Firme. Controlada. — Eu não vim para machucar ninguém.
O pai hesitou.
— A gente não confia nele — o pai murmurou.
— Ele veio por causa dela — a avó rebateu.
Lyria sentiu os dois a encararem.
— Eu estou aqui, tá? — ela disse. — Alguém por favor me explica o que está acontecendo?!
A porta bateu a terceira vez.
— Lyria Kaelith, abra a porta. — A voz agora disse seu nome. O nome que ela nunca contou a ninguém. O nome que não sabia que tinha.
Seu corpo inteiro gelou.
— Meu nome não é esse — ela sussurrou.
A avó engoliu em seco.
— É. Esse é o nome que sua mãe te deu.
A porta rangeu.
O trinco começou a tremer, sozinho.
— Não temos tempo — a voz do lado de fora disse. — Se eu não entrar agora, eles vão chegar primeiro.
— Eles quem?! — Lyria quase gritou.
O pai a puxou para trás.
A avó se posicionou entre a porta e a neta — como alguém pronto para lutar, mesmo sabendo que não venceria.
A luz do medalhão acendeu.
Forte.
Forte demais.
O trinco se soltou.
A porta abriu com violência.
E a figura que Lyria tinha visto na ponte entrou.
Capuz. Olhos prateados. Marca brilhando no pulso. E um olhar que parecia atravessá-la inteira.
Ele olhou direto para ela.
— Finalmente te encontrei.
Lyria recuou um passo involuntário.
— Quem é você? — ela perguntou, a voz tremendo.
Ele ergueu o rosto.
— Meu nome é Kael — disse. — E você precisa sair daqui agora, antes que o vale deixe de existir por sua causa.
O medalhão vibrou como se confirmasse.
E o vale, lá fora, começou a tremer.







