Mundo de ficçãoIniciar sessãoEla acorda coberta de sangue — que não é dela — no centro de um círculo de lobos prontos para executá-la. Não lembra quem é. Não lembra o que fez. Mas todos ali sabem exatamente o crime que ela cometeu. Marcada como a traidora que destruiu a própria alcateia, Lyra deveria morrer naquela noite. O problema? O alfa que levanta a lâmina para matá-la é o mesmo homem que treme ao sentir o cheiro dela. E o lobo dentro dele reconhece o dela… como igual. Entre caçadas, rituais antigos, desejo proibido e memórias que retornam em fragmentos sangrentos, Lyra descobre que o maior perigo não é o que ela fez no passado — é o que ela ainda é capaz de fazer quando uiva. Uma história de lobos onde o amor não salva. Ele condena.
Ler maisA primeira coisa que Lyra sentiu foi o frio.
Não o frio comum da noite, aquele que apenas toca a pele e desaparece com um arrepio passageiro. Era um frio invasivo, vivo, que se infiltrava por dentro do corpo como dedos gelados procurando algo para arrancar. Se alojava nos ossos e fazia os músculos esquecerem como obedecer, transformando-os em algo inútil, pesado. Um frio antigo, quase ritualístico, carregado de intenção — como se a própria terra a rejeitasse, cuspindo-a para fora com nojo. A neve colava em seus joelhos nus, úmida e pesada, misturada a manchas escuras que ela reconheceu tarde demais. Suas mãos tremiam de forma descontrolada, não apenas pelo frio que mordia a carne exposta, mas pelo esforço brutal de permanecer consciente quando cada célula do corpo gritava para desistir, para deixar a escuridão vir. Havia um gosto metálico na boca, espesso, enjoativo, familiar demais para ser ignorado. Sangue. Ela passou a língua pelos lábios rachados, engoliu em seco e soube com certeza absoluta. Não era dela. Não podia ser — ela ainda respirava, ainda pensava, ainda existia. Mas seu corpo estava manchado com ele, pintado em tons escuros que contavam uma história que sua mente recusava a recuperar. O círculo ao redor era perfeito demais para ser acaso. Doze lobos formavam uma roda precisa, calculada, antiga como os próprios rituais que fundaram a alcateia. Nenhum passo fora do lugar. Nenhuma hesitação nas posturas rígidas. Doze pares de olhos refletiam a lua cheia acima como espelhos quebrados: dourados intensos que ardiam com ódio mal contido, âmbar profundo que julgava sem precisar de palavras, prateados frios como lâminas recém-afiadas. Alguns a observavam com ódio declarado, máscaras de raiva pura que não se importavam em esconder. Outros, com nojo visceral, como se ela fosse algo podre que contaminava o ar apenas por existir. Havia ainda aqueles que apenas aguardavam, pacientes, lobos acostumados a execuções que sabiam exatamente como isso terminaria. Nenhum deles rosnava. Não precisavam. O silêncio era infinitamente pior. Era denso, tangível, pressionando os ouvidos até fazê-los zumbir, esmagando o peito até cada respiração doer, fechando a garganta até engolir se tornar um ato de coragem. Era o silêncio do julgamento final, o tipo que antecede sentenças definitivas e irreversíveis. O tipo que não admite apelações. Lyra engoliu em seco, forçando saliva pela garganta queimada, e tentou se levantar. O corpo respondeu com uma dor brutal, lancinante, que explodiu na base do crânio e atravessou sua cabeça como um raio antes de descer pela espinha em ondas nauseantes. Era como se algo dentro dela — alguma parte fundamental, selvagem — gritasse para permanecer onde estava, para aceitar o destino, para não desafiar o que estava por vir. Seus braços falharam pateticamente, músculos se recusando a sustentar o próprio peso, e ela caiu de volta na neve com um impacto que expeliu o ar dos pulmões. Ofegante, derrotada, pequena. — Não se mova. A voz masculina cortou o ar gélido com autoridade absoluta, inquestionável. Grave. Firme. Sem emoção aparente, mas carregada de um peso que fazia a ordem soar menos como sugestão e mais como lei natural. Ela ergueu o rosto lentamente, cada músculo do pescoço protestando. Ele deu um passo à frente, rompendo o círculo sagrado. Era mais alto que os outros, facilmente uma cabeça acima dos demais, com ombros largos que bloqueavam parcialmente a lua, postura reta que não admitia dúvidas, presença esmagadora que preenchia o espaço ao redor como gravidade. O tipo de lobo que não precisava impor medo através de rosnados ou ameaças — ele simplesmente *era* o medo em carne e osso, incorporado, e isso bastava para dobrar vontades. A lua iluminava parcialmente seus traços severos: cabelos escuros caindo de forma indisciplinada sobre a testa, contraste com a ordem militar do resto da aparência, mandíbula marcada por linhas duras, olhos dourados que brilhavam com intensidade predatória, frios como metal deixado na neve. Até pousarem nela. O olhar dele mudou. Foi sutil — tão rápido que alguém piscando teria perdido — mas inconfundível. Por um segundo, apenas um, algo rachou naquela máscara de controle absoluto. Não foi piedade. Não foi dúvida moral. Foi reconhecimento. Instintivo. Visceral. Violento na forma como o atingiu, fazendo algo por trás daqueles olhos dourados estremecer. Ele se recompôs rápido demais para que os outros percebessem, a máscara deslizando de volta no lugar. — Por traição à alcateia de Varyk — anunciou, a voz ecoando pela clareira com formalidade ritual —, você perde o direito ao nome, ao uivo e à vida. Por derramamento de sangue proibido, sua existência é apagada desta terra. Que a lua testemunhe e aprove. *Traição.* A palavra bateu dentro dela como um sino quebrado, reverberando em um espaço vazio da memória que deveria conter algo importante. Ela tentou desesperadamente agarrar qualquer lembrança, qualquer imagem, qualquer fragmento que explicasse aquilo — o sangue, o círculo, a acusação. Mas encontrou apenas sombras deslizantes, formas sem substância que escapavam quando tentava focar. — Eu… — Lyra tentou falar, mas a garganta queimava como se tivesse engolido brasas, seca, ferida, produzindo apenas um som rouco. — Eu não lembro. O murmúrio foi imediato, explosivo. Alguns lobos riram, um som áspero, cruel, sem nenhum traço de humor verdadeiro. Outros cuspiram no chão com violência deliberada, em sinal de desprezo absoluto. Uma fêmea disse algo baixo demais para Lyra captar, mas o tom carregava veneno puro. — Mentira — rosnou uma voz feminina à esquerda, penetrante, os olhos estreitados em fendas de ódio. — Ela sempre mente. Sempre mentiu. É o que traidoras fazem. O homem — o alfa, tinha que ser — deu mais alguns passos, aproximando-se dela com movimentos controlados, deliberados, cada um medido como se estivesse se aproximando de algo perigoso. Agora, Lyra sentiu o cheiro dele com clareza devastadora: madeira molhada depois da chuva, ferro oxidado, sangue antigo absorvido em couro e algo selvagem, primal, impossível de nomear mas que falava diretamente com a parte animal enterrada em seu âmago. O coração acelerou sem permissão, batendo descompassado contra as costelas. Quando ele se agachou lentamente à sua frente, reduzindo a distância entre eles até que pudesse sentir o calor do corpo dele contrastando com o frio da noite, ela percebeu o quanto tremia — tremores que sacudiam todo o corpo. Não era medo. Pelo menos não apenas medo. Era reconhecimento. Profundo. Inexplicável. O que era completamente impossível. Ela não o conhecia. Tinha certeza que não conhecia. Então por que cada instinto gritava o contrário? — Olhe para mim — ordenou, a voz baixa agora, mas não menos autoritária. A voz não permitia recusa. Não aceitava desobediência. Lyra levantou o rosto, forçando-se a encarar aqueles olhos dourados. O impacto foi imediato e devastador. O mundo pareceu inclinar violentamente, como se o chão tivesse perdido o eixo e tudo estivesse despencando para um lado. Algo dentro do peito dela se contorceu com força brutal, um aperto quase doloroso que roubou o fôlego, como se um fio invisível tivesse sido puxado com força excessiva, conectando-a a ele de forma que transcendia explicação lógica. O ar ficou pesado, denso, impossível de processar. Difícil de respirar. Os pulmões esqueceram como funcionar. Os olhos dele se estreitaram imperceptivelmente. A mandíbula travou, músculos saltando sob a pele. As narinas se alargaram brevemente, como se tentasse captar um cheiro específico. Ele sentiu também. O que quer que fosse aquilo — aquela conexão impossível, aquele reconhecimento que não deveria existir — ele sentiu com a mesma intensidade. — Kael — alguém murmurou atrás deles, tenso, impaciente. — Termine logo. A lua espera. *Kael.* O nome atravessou Lyra como um golpe físico, antigo, esquecido mas simultaneamente familiar. Ecoando em um lugar profundo da mente que ela não sabia que existia. Familiar demais. Íntimo demais. Carregado de peso emocional que não fazia sentido algum. Ela nunca tinha ouvido esse nome antes. Mas seu corpo discordava, reagindo como se o conhecesse desde sempre. Kael puxou uma lâmina curva da bainha presa ao cinto, o metal cantando baixo quando deixou o couro — um som quase musical, hipnótico. Era prateada, polida até brilhar como lua líquida, marcada com símbolos rúnicos antigos gravados ao longo da superfície que pareciam pulsar com luz própria sob o luar. A lâmina ritual. A que executava traidores desde antes da memória viva da alcateia. Ele segurou o queixo dela com firmeza, dedos calejados quentes contra a pele gelada, forçando-a a manter o contato visual. Encostou a ponta fria da lâmina em seu pescoço, exatamente sobre a artéria que pulsava descontroladamente. A pele ardeu no contato com a prata, como se estivesse sendo marcada a ferro. Um fio fino de sangue escorreu lentamente pelo pescoço, quente, vivo, contrastando com o frio mortal da noite. — Diga suas últimas palavras — disse ele, e havia algo estranho na voz agora. Não era suave. Não era gentil. Mas havia uma tensão que não existia antes, como se cada palavra custasse esforço para pronunciar. Lyra fechou os olhos, sentindo a lâmina pressionar mais forte. Era o fim. Tinha que ser. E então, sem entender como, sem escolher conscientemente, sem controle algum, algo despertou. Não foi coragem. Não foi desespero. Foi instinto puro, primitivo, inegável. Um uivo rasgou sua garganta — profundo, antigo, ressoante, poderoso demais para aquele corpo pequeno e quebrado. Não era um som comum, não era o uivo de um lobo qualquer pedindo misericórdia ou aceitando a morte. Era um chamado que ecoava através da floresta, fazendo árvores estremecerem. Um aviso que carregava autoridade que não deveria existir. Um desafio que desafiava a própria ordem natural. A terra sob seus joelhos vibrou como se algo gigantesco se movesse nas profundezas. A neve explodiu em todas as direções, criando uma nuvem branca. Os lobos recuaram em uníssono, movendo-se antes mesmo de processar o que faziam. Alguns caíram de joelhos involuntariamente, dominados por algo que não conseguiam nomear, rostos contorcidos em confusão e medo instintivo. Um ou dois uivaram de volta, compulsivamente, antes de se calarem horrorizados. Kael congelou completamente. A lâmina parou a milímetros de cortar mais fundo. Porque aquele uivo… Não era de uma traidora. Não era de uma subordinada implorando por vida. Era de *igual*. Era de *alfa*. Os olhos dele brilharam com uma intensidade perigosa, selvagem, quase faminta — dourado se transformando em algo mais líquido, mais animal. — Levem-na para as celas — ordenou abruptamente, a voz alterada, tensa demais, rouca demais para alguém que comandava uma execução com frieza ritual. — Agora. Silêncio atordoado. — Mas, Alfa— — começou alguém, chocado, confuso. — A sentença… — AGORA! O rugido ecoou pela clareira, incontestável, carregado de autoridade que fez até os lobos mais velhos se curvarem. Mãos duras a agarraram de todos os lados, dedos cravando em braços, ombros, pernas. O mundo girou violentamente, virando de cabeça para baixo. O frio, o sangue, a lua, os rostos se misturaram em uma confusão nauseante de sensações. Vozes gritavam, mas o som chegava distante, abafado, como se estivesse debaixo d'água. A escuridão avançou pelas bordas da visão, estreitando o mundo até restar apenas um ponto de luz. Antes de perder completamente a consciência, antes de ser engolida pelo vazio, Lyra teve apenas uma certeza ardendo no peito como brasa: Ela deveria ter morrido naquela noite. E o fato de não ter morrido — o fato de ele ter parado a lâmina no último segundo, de ter dado aquela ordem impossível… mudaria absolutamente tudo. Para ela. Para ele. Para a alcateia inteira. A lua testemunhou. E esperou.A escuridão da cela tinha textura própria.Não era apenas a ausência de luz, era a presença de algo vivo, denso, que se agarrava à pele como dedos gelados. Lyra permanecia imóvel sobre a pedra fria, cada respiração trazendo o ar viciado que queimava os pulmões. O pulso livre ainda latejava onde Kael havia tocado, uma marca invisível que ardia mais que as feridas abertas. O outro braço permanecia preso, o metal mordendo a carne em um lembrete constante de sua condição.Minutos atrás ou teriam sido horas? o tempo se perdia naquele buraco. Os mesmos lobos que trouxeram o corpo o haviam arrastado para fora. Mas o cheiro se recusava a partir. Sangue coagulado. Morte recente. Acusação silenciosa que flutuava no ar denso como fumaça.Você fez isso.As palavras ecoavam na mente, insistentes, impossíveis de aceitar mas impossíveis de negar completamente. As evidências estavam ali, o corpo dilacerado, o testemunho de doze lobos, os olhos de Kael carregados de dor e ódio.Lyra fechou os olhos co
O passado veio como uma lâmina mal afiada.Não cortava de uma vez, rasgava devagar, abrindo feridas que nunca haviam cicatrizado direito. Lyra estava correndo. Aquilo tinha acontecido cerca de um ano antes do sangue, antes do julgamento, antes do nome dela se tornar sinônimo de traição. Um tempo curto demais para ser esquecido, mas longo o suficiente para que tudo parecesse pertencer a outra versão dela. Uma versão mais ingênua. Mais inteira. Mais perigosamente confiante. A floresta se abria diante de seus passos com familiaridade, os galhos desviando quase sozinhos, como se a própria mata conspiasse a seu favor. A terra macia respondia ao peso de seus pés, moldando-se, amortecendo cada impacto. O vento batia contra o rosto, carregado de cheiros vivos: musgo úmido da margem do rio, resina escorrendo de cascas feridas, o rastro metálico de caça recente, o almíscar denso de outros lobos. O corpo obedecia sem esforço, cada músculo sincronizado numa dança ancestral. Forte. Rápido. Inte
Lyra foi arrancada do inconsciente pelo cheiro, e a dor veio logo em seguida, como uma companheira fiel que apenas esperava o momento certo para se anunciar.Pedra úmida. Ferro oxidado. Sangue velho impregnado em cada fissura das paredes.O odor era tão denso, tão tangível, que parecia grudar na língua como óleo rançoso, se infiltrar em cada respiração até se tornar parte dela. Cada inspiração queimava o peito, trazendo consigo ecos de algo que ela não conseguia lembrar conscientemente, mas que o corpo reconhecia com uma repulsa visceral, instintiva — a memória ancestral de violência, de morte, de outros que haviam ocupado aquele espaço antes de desaparecerem para sempre.Abriu os olhos devagar, piscando contra a luz fraca e doentia que escorria por uma abertura irregular no teto de pedra, provavelmente uma ventilação mal feita que deixava entrar mais umidade que ar fresco. Os olhos levaram tempo demais para focar, a visão embaçada oscilando entre clareza e escuridão.Estava deitada s
A primeira coisa que Lyra sentiu foi o frio.Não o frio comum da noite, aquele que apenas toca a pele e desaparece com um arrepio passageiro. Era um frio invasivo, vivo, que se infiltrava por dentro do corpo como dedos gelados procurando algo para arrancar. Se alojava nos ossos e fazia os músculos esquecerem como obedecer, transformando-os em algo inútil, pesado. Um frio antigo, quase ritualístico, carregado de intenção — como se a própria terra a rejeitasse, cuspindo-a para fora com nojo.A neve colava em seus joelhos nus, úmida e pesada, misturada a manchas escuras que ela reconheceu tarde demais. Suas mãos tremiam de forma descontrolada, não apenas pelo frio que mordia a carne exposta, mas pelo esforço brutal de permanecer consciente quando cada célula do corpo gritava para desistir, para deixar a escuridão vir. Havia um gosto metálico na boca, espesso, enjoativo, familiar demais para ser ignorado.Sangue.Ela passou a língua pelos lábios rachados, engoliu em seco e soube com certe





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