Mundo ficciónIniciar sesiónO vale parecia outro lugar naquela noite. Não era o mesmo caminho por onde Lyria passava todos os dias. O ar estava pesado, o chão vibrava em ondas, e a névoa rastejava tão rápido que parecia viva. Kael não soltou a mão dela nem por um segundo.
Ele corria como se conhecesse cada pedra, cada curva, cada árvore — mas Lyria tropeçava, quase caindo várias vezes.
— Aonde você está me levando?! — ela gritou, tentando puxar o braço.
— Para longe da casa — Kael respondeu, sem olhar para ela. — A barreira está quebrando.
Atrás deles, o rugido se repetiu. Mais alto. Mais perto. As garras arranharam a terra com força.
Lyria sentiu o coração explodir no peito.
— O que são essas coisas?!
— Caçadores — Kael disse. — Criaturas do outro lado. Foram feitas para sentir seu sangue.
— O meu sangue?! — ela quase tropeçou de novo. — Eu nem sei quem eu sou!
— Eu sei — ele respondeu. — E eles também.
A barriga dela gelou.
O vale se iluminou por um segundo com uma luz azulada — como um relâmpago silencioso — e Lyria viu as formas se aproximando. Altas. Deformadas. Como sombras presas em corpos tortos.
Ela quase parou de correr.
Kael puxou.
— Não olha — ele ordenou. — Se olhar muito tempo, eles te veem mais rápido.
— Eles já estão nos vendo rápido demais! — ela gritou.
Kael não negou.
— Por isso precisamos chegar antes deles.
Antes onde?
Chegaram a uma fenda no chão, onde a água corria entre pedras. Kael pulou o riacho sem hesitar e estendeu a mão.
— Vem!
Lyria pulou, quase não alcançando. Ele a segurou pela cintura e a colocou do outro lado.
O toque durou meio segundo — mas foi o bastante para o medalhão vibrar com força. Kael olhou para o pingente, e o olhar dele mudou por um instante.
Algo como… reconhecimento.
Mas ele não teve tempo para falar.
Um uivo estridente cortou o ar.
Lyria se virou a tempo de ver duas criaturas avançando rapidamente, seus corpos retorcidos ganhando forma. A névoa corria atrás delas, puxada como correnteza.
— Kael! — ela gritou.
Ele ergueu o braço e a marca no pulso dele brilhou — um símbolo prateado em forma de meia-lua. Uma onda de luz saiu de sua pele, empurrando a névoa por alguns metros.
Não as criaturas.
Somente a névoa.
— Isso não vai segurá-las muito tempo — Kael disse, a voz tensa. — Anda!
Lyria correu ao lado dele. As criaturas ganhavam terreno. O som dos passos delas era errado — como se os ossos estalassem enquanto corriam.
O medalhão pulsou tão forte que queimou a pele.
— Por que isso está acontecendo comigo?! — ela gritou.
— Porque você despertou — Kael respondeu. — E porque agora todos sentem você.
— O que isso quer dizer?!
— Que você é a herdeira.
Lyria quase parou.
— Herdeira do quê?!
Kael segurou seu braço.
— Depois. Se a gente sobreviver.
Eles viraram por entre duas pedras grandes, onde a mata ficava mais fechada. Galhos arranhavam a pele dela, raízes prendiam seus pés, mas Kael seguia abrindo caminho com o antebraço, como se nada pudesse pará-lo.
O rugido atrás deles sacudiu o chão.
Lyria tropeçou.
As garras tocaram a pedra onde o pé dela estivera um segundo antes.
— KAEL! — ela gritou.
Ele voltou sem pensar. Agarrou a mão dela e a levantou com força.
— Corre, Lyria!
Ela correu. Não sabia se pelas pernas, pelo medo ou pelo instinto de sobrevivência que nunca tinha sentido antes.
A criatura saltou.
Lyria ouviu o ar rasgar atrás dela.
Kael puxou-a para o chão — os dois rolaram por baixo de um tronco caído. A criatura bateu no tronco com tanta força que ele estourou ao meio.
Lyria gritou.
Kael levantou primeiro e já estava puxando-a de novo.
— Chega! — ela gritou, chorando. — Chega! Eu não sei o que está acontecendo, eu não sei quem são eles, eu não sei por que eu—
Kael segurou o rosto dela entre as mãos.
O toque foi firme, urgente.
— Você vai saber tudo — ele disse. — Mas agora, você precisa confiar em mim.
— Confiar em você?! — ela tremia. — Eu nem sei quem você é!
— O único que está tentando te manter viva.
O chão vibrou como se algo enorme estivesse correndo por baixo.
Kael soltou o rosto dela.
— Eles abriram o segundo rastro. Estamos sem tempo.
Lyria sentiu a garganta secar.
— Segundo rastro?
Kael olhou para o medalhão.
— A passagem. A mesma que sua mãe tentou fechar.
A palavra “mãe” atingiu Lyria como um golpe.
— Você… você conhece minha mãe?
Kael desviou o olhar.
— Eu conheci.
O vale estremeceu novamente.
Kael segurou a mão dela com força.
— Estamos quase no ponto seguro. Depois disso, não tem volta.
Lyria mordeu o lábio, o coração batendo tão rápido que doía.
— O que acontece se eu não for?
Kael respondeu sem hesitar:
— Você morre.
A honestidade fria doeu mais que qualquer rugido.
Eles correram mais alguns metros e chegaram a um círculo de pedras pequenas, cobertas por runas apagadas. Era um local comum no vale — um ponto onde a avó dela acendia velas às vezes.
Mas agora, a terra ao redor pulsava com uma luz fraca.
Kael parou.
— É aqui.
Lyria ofegava.
— Aqui… o quê?
— O caminho. — Ele se aproximou das pedras. — Um portal menor. Fraco, mas suficiente para nos esconder até a passagem abrir.
Ele tocou a marca do pulso na pedra central.
As runas acenderam.
A névoa atrás deles se moveu violentamente.
As criaturas estavam chegando.
Lyria olhou para o brilho, para Kael, para a floresta atrás.
— Se eu atravessar isso… — ela sussurrou — …eu não volto mais, né?
Kael nunca tirou os olhos dela.
— Não volta igual.
A criatura rasgou a névoa atrás deles — alta, distorcida, os olhos prateados brilhando.
Kael puxou Lyria pela cintura.
— AGORA!
Ela fechou os olhos.
E os dois saltaram juntos.
A luz os engoliu.
O vale desapareceu.
E o mundo dela acabou.







