O amanhecer em Windgrave era sempre lento, coberto por névoas que pareciam arrastar os sonhos da noite até o meio-dia. Kieron saiu cedo, com o caderno no bolso, a mente ainda carregando o eco da voz de Nix — tão jovem, tão despedaçada.
A ponte ficava a alguns quilômetros do centro. Era antiga, de pedra, e atravessava o rio que dividia a cidade entre o agora e o esquecido. Muitos evitavam aquele lugar depois do pôr do sol, mas para Kieron, não era o medo que importava — era o silêncio.
E naquele silêncio, ele encontrou algo.
Perto da base da ponte, entre pedras molhadas e galhos arrastados pela correnteza, um brilho discreto chamava atenção. Ajoelhou-se, afastando a vegetação rasteira, e pegou o objeto com cuidado.
Era uma pulseira azul, simples, feita de contas translúcidas. Estava partida no fecho, como se tivesse sido arrancada.
Kieron a girou entre os dedos. Não havia nome, nem inscrições. Apenas o frio do vidro e algo estranho — uma leve pulsação. Como se a pulseira ainda carregasse fragmentos da energia de Nix.
Ele fechou os olhos, concentrando-se.
Nada.
Mas quando o vento soprou com mais força, trazendo o cheiro do rio e da terra úmida, uma imagem lampejou em sua mente.
Um riso.
Correria.
Duas garotas de mãos dadas, atravessando aquela mesma ponte.
E uma delas... usava a pulseira.
— Nix? — ele chamou, mentalmente. — Estou na ponte. Encontrei algo seu.
A resposta não veio de imediato. Mas quando veio, foi diferente — não um sussurro, mas uma avalanche de emoções.
— Eu... me lembro disso. Eu estava com alguém. Uma amiga.
A voz tremia.
— A gente fugia de alguém. Tinha medo. E eu caí...
— Do que estavam fugindo?
Silêncio.
— Eu... não sei. Estava atrás de nós. Mas não era gente. Ou era.
Pausa.
— Só lembro dos olhos. E de gritar pra ela correr.
Kieron sentiu um peso no peito. Aquilo era mais do que um caso de desaparecimento. Era como se a garota tivesse sido apagada do mundo por algo que não queria ser descoberto.
Ele guardou a pulseira no bolso e encarou a ponte, como se ela pudesse responder.
Não havia mais volta.
Nix agora dependia dele.
E, de alguma forma que ainda não compreendia, ele também dependia dela.
De volta ao necrotério, Kieron pesquisou por qualquer notícia sobre adolescentes desaparecidas perto de Windgrave nos últimos meses. Vasculhou arquivos da delegacia, fóruns locais, e finalmente encontrou algo que fez o estômago revirar:
Duas meninas, 16 e 15 anos, haviam fugido de um abrigo chamado Casa Branca há pouco mais de quatro meses. Uma delas usava uma pulseira azul nas fotos de desaparecimento. A outra... não tinha nome divulgado. Só a informação de que “não estava mais sob tutela”.
Era comum os abrigos renomearem crianças e adolescentes, principalmente as que não tinham família registrada. Nix podia ser uma dessas. Ou talvez a amiga. Mas Kieron sentia — com aquela intuição que só os mortos lhe ensinavam — que ela era a garota da pulseira.
O abrigo, um casarão afastado cercado por cercas enferrujadas e janelas embaçadas pelo tempo, tinha fama de “protetor”, mas escondia o silêncio de quem já quis gritar. Kieron sabia disso. Ele mesmo quase fora parar ali quando pequeno.
Não pensou duas vezes: pegou a mochila, o caderno, a pulseira azul... e foi.
---
A Casa Branca ainda estava de pé. Frágil, porém altiva, como alguém que finge estar bem para não ser desmontado por dentro. A mulher que o atendeu na portaria usava óculos de lentes grossas e um broche com a inscrição “Sra. Miriam”.
— Boa tarde. Posso ajudá-lo?
— Estou procurando informações sobre duas meninas que viveram aqui. Fugiram há uns quatro meses.
Ela apertou os lábios.
— Não fornecemos informações a estranhos.
Kieron tirou a pulseira do bolso. Os olhos da mulher mudaram.
— Onde conseguiu isso?
— Encontrei. Perto do rio. Acredito que uma das meninas estava lá.
Sra. Miriam hesitou. Por fim, abriu a porta um pouco mais.
— Entre. Mas seja breve.
---
A sala era pequena, com cheiro de mofo e papéis antigos. Miriam sentou-se com um suspiro.
— Elas se chamavam Isadora e Liah. Liah não era seu nome real. Foi como ela se apresentou. Era fechada, mas Isadora a adorava. As duas tinham uma conexão que... ultrapassava o comum.
Kieron sentiu um arrepio.
— O que aconteceu com elas?
— Disseram que fugiram juntas. Mas só uma delas apareceu tempos depois. Ferida, confusa, e... mudou de nome. Disse que Liah tinha caído no rio, que foi sua culpa. Depois sumiu. Os registros foram apagados. Houve uma ordem. — Ela abaixou a voz. — Não era pra ninguém mais falar disso.
— Isadora voltou?
— Não com esse nome. Ela se chamava agora... Eve.
O nome soou distante. Como se tivesse vindo de um lugar onde as memórias dormem sob véus escuros.
Kieron guardou a pulseira.
— Onde posso encontrar essa Eve?
— Não sei. Mas ouvi dizer que... às vezes, ela vai até a ponte. Sozinha. Como se esperasse alguém.
Ele saiu da Casa Branca com mais perguntas do que respostas. Mas agora, o caso de Nix tinha um fio. E do outro lado dele, talvez estivesse Eve.
Ou... Isadora.
Ou alguém que não queria ser encontrada.