O cheiro de formol já não incomodava Kieron. Com o tempo, tudo vira hábito — até a morte.
A madrugada estava como sempre: quieta demais. O necrotério de Windgrave não era movimentado, e Kieron preferia assim. Passava os dias entre corpos sem nome, histórias interrompidas e silêncios que pesavam mais do que qualquer palavra. Mas naquela noite, o silêncio parecia... inquieto. Quando o corpo chegou, envolto no lençol pálido, Kieron sentiu algo diferente. Uma espécie de vibração no ar, como se a própria sala contivesse um segredo. A ficha de entrada era um vazio: Sexo: Feminino. Idade estimada: 16 anos. Identificação: Desconhecida. Causa da morte: Inconclusiva. Ele puxou a bandeja metálica, como fazia com tantos outros. O rosto da garota era sereno, mas sua expressão carregava algo estranho — como se, mesmo na morte, ela esperasse por respostas. O ritual que ele havia desenvolvido ao longo dos anos não era comum. Encostar na pele, fechar os olhos e respirar fundo. Não funcionava com todos. Nem todos queriam falar. Alguns apenas sussurravam. Outros choravam. Poucos tinham coragem de encarar o que deixaram para trás. Mas ela... Ela surgiu com um sussurro partido: — Onde... eu estou? Kieron recuou um passo, coração acelerado. Aquilo não era comum. Aquilo não era apenas uma alma perdida. — Você... consegue me ouvir? — ele sussurrou de volta, mentalmente, tentando manter a conexão. Silêncio. Depois, como um eco: — Está escuro. Eu... não sei onde estou. Não sei quem sou. A mente de Kieron girava. Nunca acontecera antes. Mesmo os mortos mais perturbados lembravam de fragmentos, nomes, rostos, sensações. Mas aquela garota parecia um espelho quebrado — nenhuma memória, nenhum traço. — Está tudo bem. Eu sou Kieron. Estou aqui para te ajudar — disse ele, suavemente. — Me ajudar a... o quê? Ele hesitou. — A lembrar. A seguir em frente. Mas como ajudar alguém que não sabe nem por onde começar? Kieron sabia que aquela noite mudaria tudo. E por mais estranho que parecesse... havia algo naquela voz, naquela ausência de identidade, que o tocava de forma diferente. Uma sensação incômoda de que ela não havia simplesmente morrido. Alguém havia feito questão de apagá-la. Ele olhou para o teto, onde o som do ventilador girava em lamentos metálicos. Lá fora, a cidade dormia. Lá dentro, Kieron dava boas-vindas à alma mais perdida que já havia encontrado. E, pela primeira vez, ele se sentia igualmente perdido. Kieron passou a madrugada ao lado do corpo. O café esfriava ao lado da mesa de aço, intocado. Havia tentado a conexão três vezes — e três vezes a alma se calou, como se se encolhesse em algum canto escuro, com medo do mundo que não lembrava. Na quarta tentativa, algo mudou. Ele fechou os olhos, pousou os dedos com leveza sobre o pulso frio e permitiu que sua mente mergulhasse naquela presença frágil. O vazio não era mudo — era pesado, denso, como se estivesse cheio de coisas que não podiam ser ditas. — Ainda está aí? — ele perguntou, mentalmente. — Eu não sei meu nome. A voz veio baixa, mas clara. E carregada de dor. — Tudo bem. Podemos descobrir juntos. Você lembra de alguma coisa? Um lugar, um rosto, um som? Pausa. — Tem... água. Uma ponte. Acho que alguém me chamava... por um apelido. A voz hesitou. — Eu não consigo ver o rosto. É como se ele estivesse... borrado. Kieron anotou as palavras num caderno: água, ponte, apelido. Pistas frágeis, mas pistas. Já era alguma coisa. — E você lembra do que sentiu por último? Silêncio. Depois: — Frio. E medo. Eu acho que corri. E alguém gritou... algo como “não olha pra trás”. A garota fez uma pausa, como se estivesse reunindo coragem. — Mas eu olhei. Um arrepio percorreu a espinha de Kieron. — O que viu? — Não sei. Eu acho que... esqueci de propósito. Essa frase não saiu da cabeça dele pelo resto do dia. --- Kieron passou as horas seguintes em sua pequena sala nos fundos do necrotério. Vasculhou os registros de entrada. Nada. A garota havia sido encontrada em uma área nos arredores de Windgrave, próxima ao rio que cortava a cidade. Sem documentos, sem marcas claras de agressão. Apenas... morta. Como se tivesse desistido de existir. Ele voltou até ela no início da noite, determinado. — Preciso de um nome para te chamar. A voz respondeu depois de um longo silêncio: — Você pode me chamar de... Nix. — Por que Nix? — Não sei. Só veio na minha cabeça. Parece certo. Kieron anotou. Nix. — Nix, você gostaria que eu tentasse descobrir quem você era? — Eu... tenho medo do que vou descobrir. Uma pausa. — Mas tenho mais medo de continuar sem saber. Era o suficiente para começar. Kieron se levantou. Apagou as luzes do necrotério e colocou o caderno no bolso. No dia seguinte, ele começaria por onde tudo parecia ter acontecido: a ponte perto do rio Windgrave. O lugar onde ela vira algo... ou alguém... antes de sua memória apagar. Lá, talvez, o vazio começasse a ter voz.