Kieron Bennett é apenas um jovem de vinte anos tentando sobreviver à rotina solitária de um necrotério — até que descobre um dom sombrio: ele consegue conversar com os mortos. Mais do que vozes, eles trazem segredos, mágoas e pedidos não realizados. Mas tudo muda quando chega o corpo de uma adolescente sem nome, sem lembranças e sem paz. Diferente dos outros, ela não sabe quem é nem por que morreu. Cabe a Kieron remontar os passos que a trouxeram até ali — e, no processo, encarar verdades que podem mudar não só o destino dela, mas o dele também. Uma história sombria e comovente sobre ecos do passado, segredos enterrados e a tênue linha entre a vida e o que vem depois.
Ler maisO cheiro de formol já não incomodava Kieron. Com o tempo, tudo vira hábito — até a morte.
A madrugada estava como sempre: quieta demais. O necrotério de Windgrave não era movimentado, e Kieron preferia assim. Passava os dias entre corpos sem nome, histórias interrompidas e silêncios que pesavam mais do que qualquer palavra. Mas naquela noite, o silêncio parecia... inquieto. Quando o corpo chegou, envolto no lençol pálido, Kieron sentiu algo diferente. Uma espécie de vibração no ar, como se a própria sala contivesse um segredo. A ficha de entrada era um vazio: Sexo: Feminino. Idade estimada: 16 anos. Identificação: Desconhecida. Causa da morte: Inconclusiva. Ele puxou a bandeja metálica, como fazia com tantos outros. O rosto da garota era sereno, mas sua expressão carregava algo estranho — como se, mesmo na morte, ela esperasse por respostas. O ritual que ele havia desenvolvido ao longo dos anos não era comum. Encostar na pele, fechar os olhos e respirar fundo. Não funcionava com todos. Nem todos queriam falar. Alguns apenas sussurravam. Outros choravam. Poucos tinham coragem de encarar o que deixaram para trás. Mas ela... Ela surgiu com um sussurro partido: — Onde... eu estou? Kieron recuou um passo, coração acelerado. Aquilo não era comum. Aquilo não era apenas uma alma perdida. — Você... consegue me ouvir? — ele sussurrou de volta, mentalmente, tentando manter a conexão. Silêncio. Depois, como um eco: — Está escuro. Eu... não sei onde estou. Não sei quem sou. A mente de Kieron girava. Nunca acontecera antes. Mesmo os mortos mais perturbados lembravam de fragmentos, nomes, rostos, sensações. Mas aquela garota parecia um espelho quebrado — nenhuma memória, nenhum traço. — Está tudo bem. Eu sou Kieron. Estou aqui para te ajudar — disse ele, suavemente. — Me ajudar a... o quê? Ele hesitou. — A lembrar. A seguir em frente. Mas como ajudar alguém que não sabe nem por onde começar? Kieron sabia que aquela noite mudaria tudo. E por mais estranho que parecesse... havia algo naquela voz, naquela ausência de identidade, que o tocava de forma diferente. Uma sensação incômoda de que ela não havia simplesmente morrido. Alguém havia feito questão de apagá-la. Ele olhou para o teto, onde o som do ventilador girava em lamentos metálicos. Lá fora, a cidade dormia. Lá dentro, Kieron dava boas-vindas à alma mais perdida que já havia encontrado. E, pela primeira vez, ele se sentia igualmente perdido. Kieron passou a madrugada ao lado do corpo. O café esfriava ao lado da mesa de aço, intocado. Havia tentado a conexão três vezes — e três vezes a alma se calou, como se se encolhesse em algum canto escuro, com medo do mundo que não lembrava. Na quarta tentativa, algo mudou. Ele fechou os olhos, pousou os dedos com leveza sobre o pulso frio e permitiu que sua mente mergulhasse naquela presença frágil. O vazio não era mudo — era pesado, denso, como se estivesse cheio de coisas que não podiam ser ditas. — Ainda está aí? — ele perguntou, mentalmente. — Eu não sei meu nome. A voz veio baixa, mas clara. E carregada de dor. — Tudo bem. Podemos descobrir juntos. Você lembra de alguma coisa? Um lugar, um rosto, um som? Pausa. — Tem... água. Uma ponte. Acho que alguém me chamava... por um apelido. A voz hesitou. — Eu não consigo ver o rosto. É como se ele estivesse... borrado. Kieron anotou as palavras num caderno: água, ponte, apelido. Pistas frágeis, mas pistas. Já era alguma coisa. — E você lembra do que sentiu por último? Silêncio. Depois: — Frio. E medo. Eu acho que corri. E alguém gritou... algo como “não olha pra trás”. A garota fez uma pausa, como se estivesse reunindo coragem. — Mas eu olhei. Um arrepio percorreu a espinha de Kieron. — O que viu? — Não sei. Eu acho que... esqueci de propósito. Essa frase não saiu da cabeça dele pelo resto do dia. --- Kieron passou as horas seguintes em sua pequena sala nos fundos do necrotério. Vasculhou os registros de entrada. Nada. A garota havia sido encontrada em uma área nos arredores de Windgrave, próxima ao rio que cortava a cidade. Sem documentos, sem marcas claras de agressão. Apenas... morta. Como se tivesse desistido de existir. Ele voltou até ela no início da noite, determinado. — Preciso de um nome para te chamar. A voz respondeu depois de um longo silêncio: — Você pode me chamar de... Nix. — Por que Nix? — Não sei. Só veio na minha cabeça. Parece certo. Kieron anotou. Nix. — Nix, você gostaria que eu tentasse descobrir quem você era? — Eu... tenho medo do que vou descobrir. Uma pausa. — Mas tenho mais medo de continuar sem saber. Era o suficiente para começar. Kieron se levantou. Apagou as luzes do necrotério e colocou o caderno no bolso. No dia seguinte, ele começaria por onde tudo parecia ter acontecido: a ponte perto do rio Windgrave. O lugar onde ela vira algo... ou alguém... antes de sua memória apagar. Lá, talvez, o vazio começasse a ter voz.Kiera não dormiu naquela noite.Desde que abrira o Livro Vivo, sua mente fervilhava com imagens que não vinham de sua própria memória — vultos de cidades que nunca existiram, nomes que ecoavam como tambores dentro do crânio, e uma risada, baixa e contínua, como se alguém estivesse ali, atrás dela, sempre.Kieron percebeu a mudança. Ela estava mais pálida, mais tensa. Seus olhos se moviam como se vissem uma paisagem paralela.— Kiera, você leu mais do que deveria? — ele perguntou, ao encontrá-la sentada no chão da biblioteca, o livro fechado ao seu lado.— Não li… o suficiente. — Ela sussurrou. — Mas uma coisa leu a mim.Havia uma pausa no tempo depois daquelas palavras. Um ranger imperceptível no ar. E então a respiração do lugar mudou.---Na manhã seguinte, quando os membros da Ordem se reuniram, o chão do salão principal estava coberto de símbolos. Marcas em espiral, linhas finas como costuras feitas a fogo. O Livro Vivo agora flutuava, girando lentamente sobre o altar.E no centro
O mundo parecia em paz. Pela primeira vez em meses, não havia espelhos sussurrando nomes. As cidades não tremiam com a aproximação de realidades paralelas. O céu era apenas céu.Mas Kieron sabia: toda cura deixa marcas. E algumas, mesmo invisíveis, ainda doem.---Na sede da Ordem da Lembrança, os corredores estavam mais silenciosos do que o habitual. Os iniciados ainda se acostumavam com o novo equilíbrio. Muitos haviam perdido partes de si no Véu Invertido. Alguns não se lembravam mais do próprio nome. Outros, agora sonhavam com vidas que não eram suas.E havia os que sonhavam com Kiera.— Ela aparece em quase todos os relatos oníricos — disse Ezra, empilhando pergaminhos. — Como uma menina vestida de branco, segurando um livro em branco.Kieron olhou para a janela. Lá fora, Kiera brincava sozinha, fazendo desenhos no chão com carvão.— Ela não é mais só minha filha — disse ele. — Ela é a guardiã de todas as possibilidades.— Isso é um peso — murmurou Evelyn, entrando na sala.Kiero
No décimo dia após o nascimento do selo de Kiera, o mundo perdeu o céu.Não que ele tenha desaparecido. Ainda havia estrelas e nuvens. Mas agora, ao erguer os olhos, era possível ver cidades refletidas, girando sobre si mesmas. Edifícios flutuantes, luzes piscando no vazio, ruas paralelas às do mundo físico. Uma sobreposição.Era como se um espelho imenso e invisível tivesse se curvado sobre a Terra.— O Véu não apenas afinou — disse Ezra, observando com binóculos espirituais. — Ele se inverteu. E o reflexo… agora nos observa.Kieron se manteve em silêncio. Estavam sobre o telhado da sede da Ordem da Lembrança. Ao seu lado, Evelyn e Lia também olhavam o céu que já não era céu. Kiera dormia em um cômodo protegido por runas de contenção.Na mão de Kieron, o colar de Evelyn tremia. Vibrava como um sino ancestral.— Alguém está tentando atravessar — disse ele.— Do outro lado? — perguntou Lia.Kieron assentiu.— Mas não de uma cidade. De algo maior.---O primeiro caso ocorreu em Lisboa.
Era noite quando o primeiro Espelho-Fenda explodiu.Não por impacto, nem por vandalismo — mas por sobrecarga. O vidro não aguentou conter tantas versões alternativas, tantas possibilidades em colisão. Ele estilhaçou-se em silêncio, e das lascas surgiram vozes. Ecos de vidas não vividas. Gritos de existências abortadas. O mundo estava se partindo de dentro.Na sede da Ordem da Lembrança, o alerta foi imediato.— Porto 7, distrito de Salvador — disse Ezra, ofegante. — O espelho explodiu, e duas entidades escaparam. Uma criança e… algo maior.Kieron ergueu o olhar do manuscrito que escrevia. — O que significa maior?Ezra hesitou.— Um possível você.---O local da explosão era um casarão abandonado no Centro Histórico. A área fora isolada, mas as pessoas ao redor relatavam pesadelos em massa, perdas de memória e, em alguns casos, acessos de fala em idiomas mortos.Kieron, Lia e Evelyn foram os primeiros a entrar. O espelho ainda brilhava em fragmentos, flutuando como pequenos sóis partid
Quando o Deus Esquecido se desfez em palavras, algo mudou no mundo. Não de forma visível, não de um modo que os jornais noticiariam. Mas no silêncio entre as horas, no espaço entre os pensamentos, o mundo parecia mais lúcido. Como se o esquecimento deixasse de ser uma bênção e passasse a ser uma escolha.Na sede da Aurora, Kieron estava em silêncio diante de uma prateleira nova. Nela, livros recém-aparecidos ocupavam os espaços: tratados esquecidos, diários perdidos, biografias de pessoas que nunca nasceram. Era como se o mundo estivesse devolvendo o que fora tirado.— Os registros estão voltando — comentou Agnes, entrando na sala. — Todos os arquivos das Cidades-Memória. Domani, Port Clay, Vallgard… até Tazriel. É como se o tempo tivesse tossido e devolvido o que engoliu.Kieron assentiu.— Mas a que custo?Agnes hesitou antes de responder:— Evelyn ainda não acordou.---O quarto em que Evelyn repousava era feito de cristal negro. Uma cápsula entre mundos. Lia passava horas por dia
O deserto não era apenas calor. Era silêncio. Um silêncio que vibrava como um segundo batimento cardíaco — irregular, antigo, e cheio de presságios. Tazriel, a cidade desaparecida no coração do deserto arábico, agora pulsava como uma lembrança viva. Um sopro de passado entre as dunas.Kieron, Lia e Ezra estavam em silêncio na parte traseira do jipe da Aurora, que os deixaria na fronteira espiritual. A marca do Guardião queimava em Kieron como se reconhecesse o destino à frente. Ele sentia Evelyn. Não como saudade — mas como se ela estivesse pensando nele, agora.Agnes os havia alertado: Tazriel era o único local entre as Cidades-Memória onde ninguém jamais retornou. Nem os portadores do selo. Nem os ecos.— Se Evelyn está lá — disse Lia — então é porque a cidade a chama. E vai tentar prender você também.Kieron assentiu.Ezra murmurou:— Tazriel é onde o Deus Esquecido foi sepultado. Não com correntes. Com narrativas falsas. Ele foi esquecido pela força da repetição. Pelas mentiras do
Último capítulo