Capítulo 3 - Eve na Névoa

Era quase noite quando Kieron voltou à ponte. O céu estava cor de aço, e a névoa subia do rio como dedos querendo tocar o mundo dos vivos. Ele sentia o peso do caderno na mochila, a pulseira no bolso e a presença silenciosa de Nix pairando ao seu redor, como se observasse tudo através de seus olhos.

— Você se lembra de Eve? — ele perguntou, em voz baixa.

Um sussurro, distante:

— Eve...

Não era uma resposta. Era um eco. Como se o nome tivesse despertado algo, mas ainda preso em algum canto escondido de sua mente.

Kieron se sentou no parapeito da ponte e esperou. O tempo parecia escorrer como areia — lento, silencioso, inevitável.

Até que ela apareceu.

Vinha a pé, envolta num casaco escuro, o capuz escondendo o rosto. Parou no meio da ponte, encarando o rio. Os sapatos encharcados denunciavam que já estivera ali antes, talvez muitas vezes. Sempre esperando algo.

Kieron aproximou-se devagar.

— Você é Eve?

Ela virou o rosto, desconfiada. Jovem, olhos claros e cansados. Havia nela algo quebrado e, ao mesmo tempo, feroz — como quem sobreviveu a mais do que deveria.

— Quem pergunta?

Ele tirou a pulseira azul do bolso e estendeu-a.

Eve empalideceu.

— Onde você achou isso?

— No rio. Onde Nix... ou Liah... caiu.

O nome caiu como uma lâmina. Ela deu um passo atrás, os olhos marejando.

— Você a viu?

— De certa forma. Ela está... comigo. — Kieron tocou o peito. — Ela não lembra de você, nem de si mesma. Mas está presa. E quer saber o que aconteceu. Eu estou tentando ajudá-la.

Eve hesitou. As lágrimas agora caíam sem controle.

— A gente jurou que fugiria juntas. Mas algo nos seguiu. A gente viu... algo que não devia. E quando corremos, ela caiu. Eu tentei voltar. Mas... alguém me achou antes. Me fizeram esquecer. Me deram outro nome. Me apagaram.

Ela encarou a pulseira nas mãos dele, como se tocá-la fosse perigoso.

— Eu voltei aqui todos os dias. Esperando que ela me perdoasse. Ou que voltasse em sonho. Mas nunca imaginei...

Kieron se aproximou mais.

— Ela não te culpa. Mas precisa lembrar. Precisa entender por que... tudo isso aconteceu.

Eve mordeu o lábio.

— Se vocês querem saber a verdade... então tem que voltar ao lugar onde tudo começou. O quarto proibido da Casa Branca. A sala trancada no porão.

Silêncio.

— É onde a gente ouviu... o que não devíamos.

E quando Eve foi embora, sumindo na névoa, Kieron entendeu que a ponte entre os mundos estava se estreitando.

E que o que morava no porão da Casa Branca... talvez nunca tivesse morrido.

Era madrugada quando Kieron retornou à Casa Branca. A cerca rangeu ao ser empurrada, e nenhuma luz acesa indicava vigilância. Mesmo assim, ele andava com cautela. A pulseira azul ainda estava em seu bolso — quente, como se pulsasse.

Nix sussurrava em sua mente.

Não palavras. Emoções. Angústia. Medo. E uma pergunta sem som:

"Foi aqui que eu morri?"

A entrada principal estava trancada. Mas uma janela lateral, próxima ao pátio, cedeu após um empurrão firme. Lá dentro, o cheiro era mais denso. Poeira, mofo... e outra coisa. Algo antigo. Quase espiritual.

O caminho até o porão era fácil de lembrar. Ele já estivera ali quando criança, em uma visita social — mas jamais permitiram que descesse as escadas enferrujadas no fundo do corredor. Agora, ele entendia o motivo.

---

A porta do porão estava trancada. Mas Kieron encontrara uma chave no arquivo antigo de Sra. Miriam — marcada apenas como “Q.S.”.

Ele a usou.

A tranca cedeu com um estalo dolorosamente alto. Lá embaixo, o frio não vinha apenas do concreto. Era um frio de ausência, de esquecimento, de tudo que a luz não alcança.

No fim do corredor, uma porta branca.

Trincada.

E coberta de riscos.

Palavras.

"NÃO ENTRE"

"VAMOS MORRER"

"ELA AINDA ESTÁ AQUI"

Kieron levou a mão à maçaneta.

— Você quer saber a verdade, Nix? — sussurrou.

Um sopro de aprovação.

Ele girou a maçaneta.

---

O quarto era pequeno. Almofadas sujas jogadas no canto, uma cadeira virada e, no centro, uma velha vitrola.

Mas o que realmente chamava atenção era o espelho na parede do fundo. Alto, oval, com a moldura rachada. E coberto por um lençol escuro.

Ao tocar o pano, algo no ar estalou.

— Kieron... — disse Nix, pela primeira vez com clareza.

Ele puxou o pano.

No espelho, seu reflexo apareceu... junto a outro. Uma menina, encolhida num canto, os olhos vazios e lágrimas que não caíam.

Nix.

— Eu me lembro.

A parede ao lado do espelho começou a tremer. Como se pulsasse.

E então, surgiu uma voz rouca e abafada:

— Ela viu o que não devia.

O espelho rachou mais uma vez.

— E você... também verá.

A luz do porão falhou. O chão tremeu.

E Kieron percebeu: a morte de Nix não fora um acidente.

Fora um aviso.

E talvez... mais alguém ainda estivesse naquele porão.

Esperando.

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