Era quase noite quando Kieron voltou à ponte. O céu estava cor de aço, e a névoa subia do rio como dedos querendo tocar o mundo dos vivos. Ele sentia o peso do caderno na mochila, a pulseira no bolso e a presença silenciosa de Nix pairando ao seu redor, como se observasse tudo através de seus olhos.
— Você se lembra de Eve? — ele perguntou, em voz baixa.
Um sussurro, distante:
— Eve...
Não era uma resposta. Era um eco. Como se o nome tivesse despertado algo, mas ainda preso em algum canto escondido de sua mente.
Kieron se sentou no parapeito da ponte e esperou. O tempo parecia escorrer como areia — lento, silencioso, inevitável.
Até que ela apareceu.
Vinha a pé, envolta num casaco escuro, o capuz escondendo o rosto. Parou no meio da ponte, encarando o rio. Os sapatos encharcados denunciavam que já estivera ali antes, talvez muitas vezes. Sempre esperando algo.
Kieron aproximou-se devagar.
— Você é Eve?
Ela virou o rosto, desconfiada. Jovem, olhos claros e cansados. Havia nela algo quebrado e, ao mesmo tempo, feroz — como quem sobreviveu a mais do que deveria.
— Quem pergunta?
Ele tirou a pulseira azul do bolso e estendeu-a.
Eve empalideceu.
— Onde você achou isso?
— No rio. Onde Nix... ou Liah... caiu.
O nome caiu como uma lâmina. Ela deu um passo atrás, os olhos marejando.
— Você a viu?
— De certa forma. Ela está... comigo. — Kieron tocou o peito. — Ela não lembra de você, nem de si mesma. Mas está presa. E quer saber o que aconteceu. Eu estou tentando ajudá-la.
Eve hesitou. As lágrimas agora caíam sem controle.
— A gente jurou que fugiria juntas. Mas algo nos seguiu. A gente viu... algo que não devia. E quando corremos, ela caiu. Eu tentei voltar. Mas... alguém me achou antes. Me fizeram esquecer. Me deram outro nome. Me apagaram.
Ela encarou a pulseira nas mãos dele, como se tocá-la fosse perigoso.
— Eu voltei aqui todos os dias. Esperando que ela me perdoasse. Ou que voltasse em sonho. Mas nunca imaginei...
Kieron se aproximou mais.
— Ela não te culpa. Mas precisa lembrar. Precisa entender por que... tudo isso aconteceu.
Eve mordeu o lábio.
— Se vocês querem saber a verdade... então tem que voltar ao lugar onde tudo começou. O quarto proibido da Casa Branca. A sala trancada no porão.
Silêncio.
— É onde a gente ouviu... o que não devíamos.
E quando Eve foi embora, sumindo na névoa, Kieron entendeu que a ponte entre os mundos estava se estreitando.
E que o que morava no porão da Casa Branca... talvez nunca tivesse morrido.
Era madrugada quando Kieron retornou à Casa Branca. A cerca rangeu ao ser empurrada, e nenhuma luz acesa indicava vigilância. Mesmo assim, ele andava com cautela. A pulseira azul ainda estava em seu bolso — quente, como se pulsasse.
Nix sussurrava em sua mente.
Não palavras. Emoções. Angústia. Medo. E uma pergunta sem som:
"Foi aqui que eu morri?"
A entrada principal estava trancada. Mas uma janela lateral, próxima ao pátio, cedeu após um empurrão firme. Lá dentro, o cheiro era mais denso. Poeira, mofo... e outra coisa. Algo antigo. Quase espiritual.
O caminho até o porão era fácil de lembrar. Ele já estivera ali quando criança, em uma visita social — mas jamais permitiram que descesse as escadas enferrujadas no fundo do corredor. Agora, ele entendia o motivo.
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A porta do porão estava trancada. Mas Kieron encontrara uma chave no arquivo antigo de Sra. Miriam — marcada apenas como “Q.S.”.
Ele a usou.
A tranca cedeu com um estalo dolorosamente alto. Lá embaixo, o frio não vinha apenas do concreto. Era um frio de ausência, de esquecimento, de tudo que a luz não alcança.
No fim do corredor, uma porta branca.
Trincada.
E coberta de riscos.
Palavras.
"NÃO ENTRE"
"VAMOS MORRER"
"ELA AINDA ESTÁ AQUI"
Kieron levou a mão à maçaneta.
— Você quer saber a verdade, Nix? — sussurrou.
Um sopro de aprovação.
Ele girou a maçaneta.
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O quarto era pequeno. Almofadas sujas jogadas no canto, uma cadeira virada e, no centro, uma velha vitrola.
Mas o que realmente chamava atenção era o espelho na parede do fundo. Alto, oval, com a moldura rachada. E coberto por um lençol escuro.
Ao tocar o pano, algo no ar estalou.
— Kieron... — disse Nix, pela primeira vez com clareza.
Ele puxou o pano.
No espelho, seu reflexo apareceu... junto a outro. Uma menina, encolhida num canto, os olhos vazios e lágrimas que não caíam.
Nix.
— Eu me lembro.
A parede ao lado do espelho começou a tremer. Como se pulsasse.
E então, surgiu uma voz rouca e abafada:
— Ela viu o que não devia.
O espelho rachou mais uma vez.
— E você... também verá.
A luz do porão falhou. O chão tremeu.
E Kieron percebeu: a morte de Nix não fora um acidente.
Fora um aviso.
E talvez... mais alguém ainda estivesse naquele porão.
Esperando.