O som do alarme cessou, como se engolido por um abismo.
Tudo ficou quieto demais.
Kieron encarava o espelho. Do outro lado, a figura de chapéu se desfazia em fumaça, e uma palavra se formava no vidro embaçado:
“ESCOLHIDO”
— O que isso quer dizer? — Kieron perguntou, voz trêmula.
A criança de olhos negros respondeu, deitada na maca:
— Você não é só um espectador, Kieron. Nunca foi. Você é o último fio entre este mundo e o outro. Um portal. Um herdeiro.
— Herdeiro do quê?
— De um pacto antigo.
As luzes piscavam. O espelho tremia.
Nix gritou em sua mente:
— NÃO OLHE! ELE ESTÁ TE MOSTRANDO O INÍCIO!
Mas era tarde.
O espelho quebrou.
E Kieron caiu dentro dele.
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Era um campo aberto, coberto de névoa.
Crianças em fila. Adultos de branco os observando.
E entre elas… ele mesmo, mais novo. Uns cinco anos.
Com os olhos arregalados, enquanto uma mulher de cabelo preso dizia:
— Este aqui. Ele é sensível.
— Sensível demais — comentou outro. — Perfeito para o projeto “Oráculo”.
Kieron cambaleou.
— Eu estive aqui…? Desde criança?
Vozes ecoaram ao redor:
— Você foi treinado para esquecer.
Você foi moldado para ouvir.
Você foi lapidado para carregar os nomes.
E, um dia, devolver todos.
E então viu: uma sala escura, com doze crianças deitadas em macas.
Nomes em suas testas. Cada um, um canal. Um sacrifício.
Mas a décima terceira maca estava vazia.
Era a dele.
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Kieron acordou suando no chão da ala espelhada.
O vidro agora refletia apenas o próprio rosto… e Nix ao fundo.
Ela murmurou:
— Você não é o guardião dos mortos, Kieron.
Você é o altar onde as histórias inacabadas são depositadas.
Ele se levantou com dificuldade.
— E se for isso… então eu quero devolver cada nome.
Cada história. Cada alma esquecida.
Nix sorriu.
— Então prepare-se, Kieron Bennett.
Porque o último nome…
É o seu.
O necrotério estava em silêncio absoluto quando Kieron retornou da Ala Espelhada. As paredes pareciam observá-lo. O frio era diferente — não físico, mas ancestral.
Ele segurava uma pequena pedra espelhada em mãos.
Tudo o que restara do portal quebrado.
Tudo o que bastava.
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Evelyn aguardava sentada sobre a mesa onde havia sido deixada. A luz azulada ao redor dela tremeluzia.
— Então? Descobriu alguma coisa? — ela perguntou.
Kieron assentiu.
— Mais do que eu queria.
— Você parece diferente. — Ela o encarava com olhos atentos. — Mais… vazio.
— Não. Mais cheio. Cheio de nomes que não são meus.
Mas falta um. O mais importante. O primeiro.
Ela o encarou, confusa.
— O seu?
Kieron segurou a pedra espelhada contra o peito. Uma lembrança atravessou seus olhos como um relâmpago:
Uma sala. Uma agulha.
Uma mulher chorando.
E alguém sussurrando:
— Kieron Bennett é o nome que demos a ele.
O verdadeiro… precisa permanecer adormecido.
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Nix apareceu atrás dele.
— Está pronto?
— Para quê?
— Para lembrar.
A pedra brilhou.
Kieron caiu de joelhos.
A luz o atravessou, rasgando suas memórias.
Mas não era dor. Era retorno.
Imagens surgiram:
Uma floresta. Um lago. Um espelho d’água.
E seu reflexo… com olhos dourados.
Uma voz ecoou nas profundezas da mente:
“Seu nome real é Key’Ryn.
Último da linhagem dos Acordantes.
Aqueles que negociavam entre vivos e mortos.
Você foi escondido no mundo dos humanos para sobreviver.”
Kieron arfou.
— Isso é… impossível.
— Isso é você — respondeu Nix. — E é por isso que a garota veio até você.
Evelyn, sem entender, se aproximou.
— E o que isso muda?
— Tudo — respondeu ele. — Porque agora…
Eu sei que minha vida não começou com a morte dos outros.
Começou com a minha.
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Silêncio.
Até que, de algum lugar do prédio, uma voz feminina ecoou:
— Kieron…
Ou melhor, Key’Ryn…
Eles estão voltando.
Os outros acordaram.
E querem seus nomes de volta.