A primeira lição que ela aprendeu foi o silĂȘncio.
Melina sentava-se Ă mesa da casa de Miguel todos os domingos, as mĂŁos sobre o colo, as costas retas como mandava o protocolo invisĂvel, e o olhar fixo no prato, mesmo quando seu estĂŽmago estava revirado. ObediĂȘncia era amor, ele dizia. E amor era sacrifĂcio. Ela repetia isso como um mantra, noite apĂłs noite, atĂ© que parou de ouvir a prĂłpria voz.
Naquela manhĂŁ, o espelho refletia a mulher que ele moldara com esmero â salto alto, vestido vinho justo, cabelo perfeitamente alisado. Cada detalhe contava uma histĂłria que nĂŁo era sua. Seu reflexo, por um segundo, pareceu questionĂĄ-la. Mas ela desviou o olhar antes que a verdade gritasse.
Miguel odiava desobediĂȘncia. E Melina era uma aluna exemplar.
Desceu as escadas da mansĂŁo com passos firmes, como se cada degrau fosse uma sentença. A casa estava silenciosa, exceto pelo som distante de um saxofone vindo da sala de estar. Miguel gostava de jazz â dizia que era mĂșsica de homens inteligentes. O cheiro de cafĂ© recĂ©m-passado flutuava no ar, misturado ao perfume caro que ele usava: Ăąmbar, couro e algo levemente metĂĄlico.
Ela o encontrou sentado, camisa branca impecĂĄvel, mangas dobradas, dedos tamborilando lentamente no braço do sofĂĄ. NĂŁo sorriu ao vĂȘ-la. Nunca sorria. Apenas acenou com o queixo para que ela se aproximasse.
â VocĂȘ atrasou â disse ele, sem tirar os olhos da xĂcara de cafĂ©.
â O motorista se perdeu no desvio da avenida nova â respondeu, baixo, como se sua prĂłpria voz a punisse por tentar se justificar.
Ele a olhou, finalmente. Aqueles olhos castanhos escuros, duros, como rochas molhadas por tempestades.
â Isso nĂŁo Ă© desculpa. Se vocĂȘ fosse importante o suficiente, ele teria chegado a tempo.
SilĂȘncio. Melina apenas assentiu. Sentou-se na poltrona Ă frente, mantendo a postura impecĂĄvel. Sabia exatamente como deveria parecer: frĂĄgil, mas nĂŁo burra. Bonita, mas nĂŁo vulgar. Inteligente, mas nĂŁo desafiadora.
â VocĂȘ vai ao jantar com os espanhĂłis hoje Ă noite â Miguel avisou, tomando um gole do cafĂ©.
Melina hesitou. Havia outra reuniĂŁo, uma que ela prĂłpria organizara com as mulheres da comunidade da zona norte, para distribuir suprimentos e recrutar discretamente mais colaboradoras para sua rede. Era algo pequeno, mas importante. Algo que ela mesma havia construĂdo, longe dos olhos dele.
â Pensei que vocĂȘ iria com o Ruan â disse, medindo o tom.
O som da xĂcara sendo colocada com força demais sobre o pires a fez estremecer.
â Ruan nĂŁo causa impacto. VocĂȘ, sim. Quero vocĂȘ do meu lado.
E lĂĄ estava: o "quero". Nunca foi "gostaria", "preciso", ou "aceitaria". Sempre uma ordem disfarçada de afeto. Miguel a queria como seu trofĂ©u â a mulher bela, silenciosa e obediente ao lado do traficante refinado. Um sĂmbolo de poder.
Ela nĂŁo respondeu de imediato. Uma parte dela queria explodir. Gritar. Dizer que tinha outras prioridades. Mas entĂŁo, os olhos dele se estreitaram â e ela lembrou. Daquela vez no quarto, o vidro quebrado, a porta trancada, os hematomas em lugares escondidos. Lembrou da dor. Do gosto de sangue na boca. Da solidĂŁo.
â EstĂĄ bem. Irei â disse, e seus olhos pareceram se desligar.
Miguel sorriu, satisfeito, e voltou ao jazz.
Horas depois, Melina estava na suĂte, observando a cidade pela janela. A mansĂŁo de Miguel ficava em um dos morros mais altos da zona sul â um trono de concreto e violĂȘncia. As luzes lĂĄ embaixo brilhavam como se o mundo fosse belo, como se ela nĂŁo estivesse presa a um conto de terror disfarçado de romance.
Pegou o celular. Havia uma mensagem de Raissa, sua aliada mais prĂłxima, perguntando se a reuniĂŁo com as mulheres seria mantida.
"Vai sem mim. DĂȘ as instruçÔes. E diga a elas que logo... tudo muda."
Digitou com os dedos tensos. Enviar aquela mensagem era, por si sĂł, um ato de rebeldia.
No fundo, Melina sabia. Algo dentro dela começava a se agitar. O eco de uma mulher que existia antes de Miguel. Uma faĂsca. Uma vontade de nĂŁo obedecer.
Mas ela precisava de tempo. Discrição. Precisava parecer perfeita â atĂ© nĂŁo ser mais.
Ă noite, no jantar com os espanhĂłis, ela brilhou.
Cabelo preso num coque milimetricamente desalinhado, olhos esfumados em tons escuros, vestido preto que delineava seu corpo sem gritar. Miguel a apresentou como âminha mulherâ. E ela sorriu, como ensaiado. Riu das piadas, fingiu estar interessada nas propostas. Mas seus olhos estavam atentos aos detalhes.
O mais jovem dos espanhĂłis, Diego, parecia observĂĄ-la mais do que devia. Era bonito. Atraente de um jeito perigoso. Mas nĂŁo foi nele que seus olhos pararam quando o salĂŁo se abriu para receber o novo convidado.
Ele entrou como quem nĂŁo devia nada ao mundo. Jeans escuros, blazer amassado, barba mal feita. Era a antĂtese de tudo o que aquele ambiente representava.
â Kauan Silva â disse o espanhol, orgulhoso. â Nosso reforço vindo do Brasil. Ex-policial. Sabe como lidar com polĂcia e com vagabundo.
Melina nĂŁo escondeu a surpresa. Ele olhou diretamente para ela, como se jĂĄ a conhecesse. E sorriu. Um sorriso lento, cheio de desafio.
â Encantado, senhoraâŠ?
â Melina â respondeu, antes que Miguel o fizesse.
â Melina â repetiu ele, como se provasse o nome na lĂngua. â Bonito. Forte. Nome de mulher que comanda.
Miguel estreitou os olhos. A tensĂŁo flutuou no ar como cheiro de pĂłlvora. Mas Melina nĂŁo desviou o olhar. Pela primeira vez em muito tempo, nĂŁo desviou.
Na madrugada, deitada ao lado de Miguel, escutando-o roncar, Melina olhava para o teto com os olhos abertos.
Uma palavra martelava em sua cabeça:
ObediĂȘncia.E ela soube, com a clareza de uma lĂąmina:
Estava pronta para desobedecer.