As vielas da Baía das Abelhas tinham o poder curioso de parecerem novas a cada manhã.
Com a mochila atravessada no ombro e o cabelo preso de qualquer jeito, Elize descia os degraus do sobrado em ritmo leve, deixando os olhos passearem pelas casas brancas com janelas azuis e vasos de flores pendurados nas sacadas. O cheiro de pão fresco já escapava de alguma padaria antes mesmo do sol nascer por completo. O barulho da scooter branca de Madalena vinha logo atrás, mas Elize preferia ir a pé. Caminhar por aquelas ruelas era quase um ritual — seu jeito silencioso de dizer que ainda pertencia àquele lugar. — Bom dia, Dona Tereza! — acenou para a senhora da varanda, que regava plantas com o mesmo capricho de quem escrevia poemas. — Bom dia, menina Elize! Vai salvar o mundo hoje? — Um café por vez! — respondeu, com aquele sorriso de quem já tinha ouvido mil perguntas como essa. O Café Velluto ficava na esquina mais charmosa da Baía. Com uma fachada em tons claros, janelas de madeira com cortinas rendadas e o cheiro inconfundível de café moído na hora, era impossível passar pela frente e não parar. Diferente da fachada discreta e charmosa, o grande destaque do lugar estava em seu terraço, acessível por uma escada lateral de ferro forjado. Lá em cima, debaixo de pergolados cobertos de flores, mesas de madeira rústica ofereciam uma vista de tirar o fôlego da marina e do mar azul. Era o café mais disputado da Baía — tanto por turistas quanto por locais — e o orgulho da região. Madalena encostou a scooter e cruzou os braços ao ver Elize sendo parada pelo terceiro conhecido no caminho. — Você devia se candidatar à prefeita. Sério. Nem político abraça tanto morador assim. Elize riu, empurrando a porta do café e deixando o sino anunciar sua entrada. — Deus me livre, já tenho problemas grande o suficientes, Madá. Lá dentro, a rotina já acontecia quase sem esforço: o aroma irresistível, a luz suave atravessando as janelas, o som de porcelanas sendo organizadas. Em poucos minutos, elas já estavam com os aventais postos e a cozinha funcionando. Enquanto colocavam os doces na vitrine e checavam os pedidos da primeira remessa de croissants, Madalena comentou: — Às vezes acho que essa cidade vive numa bolha, sabia? Tanta gente indo e vindo, turistas pra todo lado… e mesmo assim, parece que a vida aqui passa devagarinho. Elize se apoiou no balcão de madeira maciça, de frente para a marina. A brisa entrava pela porta lateral, balançando levemente o avental dela. — Eu gosto disso. Essa lentidão combina com meu coração. — Combina nada. Você tem um coração inquieto. — Minha cabeça pode querer sair daqui, Mada… mas meu coração ainda tá esperando alguma coisa acontecer. Antes que a amiga retrucasse, a porta da frente se abriu. O sino tilintou suave, como se reconhecesse quem entrava. Elize se virou no mesmo instante e sorriu. — Bom dia, sr. Aurélio. — Bom dia, minhas meninas. O café tá mais perfumado que o normal hoje… ou sou eu que tô ficando velho e sentimental? Aurélio era um senhor de meia-idade elegante, com cabelo branco bem aparado, olhar atento e um charme antiquado que fazia sucesso com as senhorinhas da cidade. Vestia sempre camisas bem passadas, sapatos de couro e um relógio antigo no pulso — o mesmo que um dia Elize tinha usado para cobrir sua própria tatuagem. Ele caminhou até o balcão como quem visita a própria casa. Madalena trouxe uma xícara já sabendo o pedido. — Forte, sem açúcar, com a fé de sempre? — perguntou, bem-humorada. — Isso. Fé e café. Uma combinação à prova de passado — respondeu ele, lançando um olhar significativo a Elize, que respondeu com um meio sorriso. Ela sabia que Aurélio entendia mais do que dizia. Muito mais. Enquanto Madalena voltava à cozinha, os dois ficaram lado a lado, observando a marina pela janela. — Te vi acordando antes do sol hoje — comentou ele, casual. — Tive um daqueles sonhos... — Com o bebê? Elize respirou fundo. Olhou para a xícara nas mãos e balançou a cabeça, sem olhar para ele. — Às vezes me pergunto se alguma parte de mim sabia que aquele dia mudaria tudo. — Sabia sim. Você sempre soube demais pra sua idade. Aurélio apoiou os braços no balcão. Seu tom era gentil, sem pressa. — Sabe, Elize... você fez o mais difícil: saiu viva. O resto é só... encontrar sentido. — E se eu nunca encontrar? — Então você inventa um. Mas faz isso com coragem, do jeito que você sempre fez. Ela sorriu de novo, com os olhos agora mais calmos. — Obrigada por ter acreditado em mim naquela época. — E por que eu pararia agora? O sino da porta tocou novamente. Mais um cliente entrou. O dia tinha começado de vez. E no fundo do peito de Elize, algo sussurrava: tá chegando a hora.