Capítulo 4 — Aqui não tem espaço pra ego
[Narrado por Alana] A viatura desceu em silêncio. O tipo de silêncio que grita mais do que sirene. Carvalho no banco de trás, quieto. Gomes mastigando a tensão no canto da boca. E Vilela… com o orgulho entalado na garganta, achando que vai sair por cima. Chegamos na base. Portão automático abriu com ranger metálico. Eu desci primeiro, postura firme, farda suada e alma carregada. Entrei no módulo, tirei o colete, joguei em cima da mesa e me virei pra ele. — “Vilela. Sala de relatório. Agora.” Ele hesitou, mas veio. Postura ainda querendo desafiar. Olho nos meus. Erro número dois. Fechei a porta. A sala ficou pequena demais pra tanta tensão. Ele cruzou os braços. — “Sargento, com todo respeito, acho que você exagerou na frente da equipe.” — “Exagero foi o que você fez com aquela porta.” — “Eu só entrei pra garantir a segurança da guarnição. Era uma situação suspeita.” — “Suspeita pra quem? Pra tua arrogância ou pro teu despreparo?” Ele deu um passo à frente. — “Eu sou policial tanto quanto você, Sargento. Você não é melhor que ninguém aqui.” — “Você não entendeu nada. Eu não sou melhor. Eu sou o comando. E se você esqueceu disso, eu te lembro na porrada — ou no papel. Escolhe com qual quer lidar.” Ele bateu a mão na mesa. Firme. Rosto vermelho. A voz subiu meio tom. — “Eu tenho cinco anos de BOPE antes dessa porra! Não sou menino de base, Sargento. Não aceito ser desmoralizado por mulher nenhuma que acha que manda porque carrega a farda justa.” O mundo parou. Por um segundo só. Mas foi o bastante pra eu sorrir de lado. Aquele sorriso que não tem humor, só veneno. — “Repete.” — “Eu disse que não aceito—” — “Não, Vilela. Repete a parte do ‘mulher nenhuma’. Vai.” Ele calou. Engoliu. Mas era tarde. Dei dois passos até ele. Fiquei tão perto que senti o bafo dele cheirando frustração e covardia. — “Você quer respeito? Então aprenda primeiro a calar a boca. Homem fraco sempre acha que mulher forte é abuso. Mas não é, não. É comando. É presença. É hierarquia. É o que separa o macho do militar.” Ele ainda tentava sustentar o olhar, mas já tava cedendo. — “Você não só invadiu um lar sem ordem. Você ameaçou uma mãe com criança no colo. Comprometeu uma operação. E agora, tá aqui bancando o macho ofendido? Quer resolver isso comigo, Vilela?” Bati no meu próprio peito. Seca. Cruel. — “Então me encara no tatame. Sem farda. Sem crachá. Sem patente. Só no que sobra: coragem. E verdade.” Ele ficou mudo. — “Ah, não tem? Então recua. Porque a única coisa que você mostrou aqui hoje… foi que é homem demais pra errar, mas pequeno demais pra assumir.” Fiz menção de sair, mas parei na porta. — “Você tá suspenso por tempo indeterminado. E se abrir a boca de novo dentro da minha base, eu arranco tua farda com a mesma mão que empunha minha arma.” Fechei a porta atrás de mim com a mesma firmeza que fechei o respeito por ele. Lá fora, o sol começava a cair. Mas dentro de mim, só subia a fúria. Aqui não tem espaço pra ego. Tem missão. Tem história. Tem um nome rodando na quebrada — e se o Muralha ouvir antes de mim, vai sobrar sangue. Porque agora... a farda não protege mais. Ela provoca. Saí da base com o corpo quente e o sangue frio. O tipo de raiva que não grita. Só ferve. Aquela que não quebra janela, mas quebra gente por dentro. Entrei no carro sozinha. Desliguei o rádio. Fui dirigindo em silêncio, com a cidade passando embaçada pelos vidros. As ruas da Zona Norte pareciam as mesmas de quando eu era pequena — só que agora, eu tinha arma na cintura e cicatriz na alma. Cheguei no meu prédio alugado. Pequeno, discreto, terceiro andar sem elevador. Lugar de guerra não aceita luxo. É onde eu moro, mas não onde eu descanso. Subi as escadas devagar. Cada degrau, um pensamento diferente. Vilela ainda me rodava na mente, mas não era ele o foco. O foco era ele. Sempre foi. Caio. Muralha. Porque no fundo, toda essa merda de missão, BO, contenção, comando... tudo tem o nome dele misturado no meio. E isso me mata mais do que qualquer tiroteio. Abri a porta. A casa tava escura. Deixei assim. Joguei a chave na bancada, tirei o coturno, o colete, a blusa da farda. Fiquei só com a camiseta preta justa no corpo e a calça camuflada. Abri a geladeira. Água quente. Engoli assim mesmo. Sentei no sofá duro. Tirei o elástico do cabelo. Soltei os ombros. Mas a cabeça não descansava. Puxei o fichário que tava em cima da mesa. Dossiê: Caio Fernando dos Santos — vulgo Muralha. Foto 3x4 desatualizada. Rosto mais magro, mas o mesmo olhar. Aquele olhar que atravessa. Que manda sem falar. Que me conhecia com 14 e me odeia com 29. Folheei o arquivo sem pressa. Cada página, um crime. Cada crime, um pedaço daquilo que ele virou — e eu fugi. Roubo, homicídio, extorsão, tráfico, domínio de território. Ele é o inimigo perfeito. Poderoso. Calculista. Imune à justiça. Mas nas entrelinhas, só eu sei o que não tá ali. O toque dele. A voz rouca. O braço que me envolvia quando o mundo desabava. O menino que dizia que ia ser o meu abrigo. E virou o motivo da minha guerra. Fechei o fichário. Me levantei. Fui até o banheiro. Me olhei no espelho. Cabelos soltos. Olhos fundos. Farda pendurada. Cicatriz visível no braço esquerdo — aquela mesma, da queda no beco, quando ele me carregou no colo até o postinho. Ele ainda não sabia ler, mas me ensinou o que era cuidado. Com 11 anos. Hoje ele sabe ler o mundo. E rege ele como quer. Lavei o rosto. Amarrei o cabelo. Voltei pro sofá. Peguei a arma. Chequei o pente. Engatei. Deixei ao lado. Porque aqui não é lar. É base. É ponto de recarga. É trincheira. E se o Muralha souber antes de mim que eu tô aqui, com farda e intenção… ou ele me abraça como antes — ou me enfrenta como agora. Só existe essas duas opções. E no fundo, as duas vão sangrar.