Narrado por Alana
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ANOS NÃO ALISARAM, LAPIDARAM
O tempo passou.
Não limpou nossas mãos, não apagou cicatriz. Só deixou as marcas mais nítidas — igual tatuagem que arde mas fica.
Eu e Caio?
A gente não virou santo. A gente virou constante. Um elo que nem bala quebra.
Depois da queda da Daniela, parecia que a cidade inteira se voltou contra nós. Operação com nome bonito, político caçando palco, milícia fantasiada de empresa de segurança. Só que aqui nunca foi palco — aqui sempre foi trincheira.
E a resposta foi simples: regra, rádio e rua. Quando a rua fala, a gente obedece.
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TRÊS NOITES QUE MOLDARAM NOSSO REINADO
1. A Madrugada do Viaduto.
Eles quiseram fechar o Conquista pela fome.
Quatro viaturas, drone baixo, farol comendo pista.
Caio jogou fumaça, eu fui por baixo do viaduto com dois moleques, terceiro na retaguarda.
Não teve poesia: teve silenciador, granada de luz e joelho ralado no asfalto.
Resultado? O caminhão de mantimento chegou inteiro.
De manhã, a panela ferveu. E a escola abriu.
No rádio deles: “fracasso”.
No nosso: “segue o baile”.
2. A Noite da Ponte Velha.
Rival desceu achando que ia fincar bandeira. Saiu com a mão pro alto.
Eu fechei flanco, Caio segurou a boca da ponte.
Foi rápido, sem espetáculo: três quedas, dois recuos, uma rendição.
Ali, todo mundo entendeu que não tinha mais várias vozes.
Tinha só uma. E ecoava: Muralha e Loba.
3. O Domingo do Cativeiro.
Pegaram um dos nossos — um moleque que levava remédio.
Queriam vitrine de medo.
Entramos na casa estreita, quintal fedendo a cachorro.
Caio entrou pelo telhado, eu pela porta dos fundos.
Dois estalos, um sono forçado, porta aberta.
O garoto saiu com a sacola ainda na mão.
A rua silenciou, depois aplaudiu sem fogos.
Resgate não é show. É dever.
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AZIZA, DIGUINHO E O FUTURO
Aziza se tornou coluna da quebrada.
Coordena escola, organiza horário, ensina paciência pra vizinhança.
Diguinho virou ponte.
Treina a molecada no galpão, corta marra cedo, mostra que respeito não é grito — é exemplo.
Eles tiveram a Safira. Menina com canela firme e olho reto.
Cresceu vendo que respeito não se pede: se sustenta.
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JULIÃO, O OLHO DENTRO
Julião sumiu o quanto precisou.
Quando voltou, trouxe menos fala e mais mapa.
Construiu rede: gente dentro e fora, ligação em ponto cego, alerta que salva.
Quando a cidade morde, ele avisa antes do giroflex bater na viela: “fecha a janela”.
Nunca foi santo, mas ficou vivo.
E do lado certo — o nosso.
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EU E O MURALHA
Quase rachamos uma vez.
Teimosia contra teimosia não dança, incendeia.
A gente aprendeu ritual: ele senta, limpa a arma; eu falo o que o rádio trouxe. Depois invertemos.
Rei e rainha?
Chama como quiser.
Eu prefiro zeladora.
Ele prefere vigia.
A coroa pesa menos assim.
Sim, tivemos uma filha: Aurora.
Nome dado num amanhecer sem tiro.
Não é enfeite, é lembrete: o dia volta, mesmo quando a madrugada insiste em ficar.
Aurora cresceu entre tatame e livro velho.
Sabe amarrar pão na cozinha da laje, sabe ouvir antes de falar.
Quando a sirene late, corre pro abrigo da Aziza sem drama — rotina salva.
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MARCAS E MEDALHAS
As cicatrizes continuam.
Tem dia que coçam, tem noite que ardem com cheiro de pólvora.
Mas também tem barulho bom:
panela, bola batendo no muro, pagode distante, criança rindo sem medo.
Quando isso acontece, sei que valeu.
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O MOTOR E A RESPOSTA
Às vezes ainda subimos de moto.
Eu na garupa, braço no peito dele.
Não é passeio. É ronda.
O barulho do motor abre respeito.
Na laje, olhando a cidade inteira, penso no preço.
Não é barato. Mas é nosso.
E quando perguntam se ainda aguentamos, a resposta sai simples, do portão de casa, sem grito:
— Aguenta. Porque ficou.
A LEMBRANÇA QUE QUEIMA
Às vezes, na laje de noite, quando a cidade lá embaixo parece um monte de vaga-lume cansado, eu ainda lembro.
Lembro do dia que saí daqui pela primeira vez com a farda limpa, acreditando que podia mudar o mundo de dentro do sistema.
Achava que disciplina, patente e relatório iam blindar minhas origens.
Achei que a favela não ia pesar no meu crachá.
Achei errado.
O que encontrei lá foi cobra de farda, verme de patente, gente com medalha na camisa e sujeira na alma.
Tentei lutar do lado deles, mas percebi rápido: não era luta. Era teatro.
E naquele palco, quem vinha de baixo só tinha dois papéis: morrer ou se vender.
Eu não aceitei nenhum.
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A VOLTA QUE NUNCA FOI FUGA
Quando voltei, não voltei como quem perdeu.
Voltei como quem entendeu onde sempre esteve o meu posto.
A farda caiu, mas a pele nunca mudou: pele de quem nasceu aqui, pele que carrega cicatriz de beco, de esquina, de tiro.
Na volta, não trouxe diploma nem promoção.
Trouxe raiva, verdade e uma certeza: meu lugar não era atrás de mesa — era no front, com o povo, com o Caio, com quem não se vende nem se ajoelha.
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O QUE FICOU
Hoje olho pro Conquista e vejo o que ficou.
Não é só muro pintado nem caveirão barrado.
É vida que segue.
É criança chutando bola sem medo de cair bala perdida.
É panela cheia, é música que toca sem ser interrompida por grito de sirene.
É mulher que anda de cabeça erguida, sabendo que se o mundo cair, tem gente que segura.
E eu aprendi que isso vale mais que qualquer farda.
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A LIÇÃO QUE EU DEIXO
O tempo ensinou.
Não adianta querer ser maior que a rua.
A rua não esquece, não perdoa, não some.
Ela só te prova.
E a prova é simples:
ou você vira o que ela precisa, ou vira só mais um nome apagado na memória.
Eu escolhi ser o que ela precisava.
E ao lado do Muralha, não virei só Alana.
Virei Loba.
E junto dele, não fiz só parte de uma história.
A gente fez o Conquista virar reino.
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ÚLTIMA PALAVRA
Se amanhã alguém perguntar o que eu aprendi indo e voltando, vestindo farda e depois vestindo a pele que sempre foi minha, eu respondo sem floreio:
— Aprendi que poder de verdade não vem de crachá, vem de permanência.
E eu permaneci.
✨ Palavra da Autora ✨
Aqui encerro mais um livro.
Foi sangue, foi lágrima, foi luta — mas acima de tudo foi história feita de coragem e resistência.
Espero de coração que cada página tenha queimado em vocês o mesmo fogo que queimou em mim ao escrever.
Se quiserem acompanhar mais lançamentos, novidades e bastidores das próximas histórias, me chamem:
📸 I*******m: @autora_val_veiga
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Obrigada por cada leitura, cada palavra e cada olhar que deram pra esse mundo que criei.
E lembrem sempre: a favela também escreve, também grita, também reina.
— Autora Val Veiga