capitulo 80 Final

Narrado por Alana

---

ANOS NÃO ALISARAM, LAPIDARAM

O tempo passou.

Não limpou nossas mãos, não apagou cicatriz. Só deixou as marcas mais nítidas — igual tatuagem que arde mas fica.

Eu e Caio?

A gente não virou santo. A gente virou constante. Um elo que nem bala quebra.

Depois da queda da Daniela, parecia que a cidade inteira se voltou contra nós. Operação com nome bonito, político caçando palco, milícia fantasiada de empresa de segurança. Só que aqui nunca foi palco — aqui sempre foi trincheira.

E a resposta foi simples: regra, rádio e rua. Quando a rua fala, a gente obedece.

---

TRÊS NOITES QUE MOLDARAM NOSSO REINADO

1. A Madrugada do Viaduto.

Eles quiseram fechar o Conquista pela fome.

Quatro viaturas, drone baixo, farol comendo pista.

Caio jogou fumaça, eu fui por baixo do viaduto com dois moleques, terceiro na retaguarda.

Não teve poesia: teve silenciador, granada de luz e joelho ralado no asfalto.

Resultado? O caminhão de mantimento chegou inteiro.

De manhã, a panela ferveu. E a escola abriu.

No rádio deles: “fracasso”.

No nosso: “segue o baile”.

2. A Noite da Ponte Velha.

Rival desceu achando que ia fincar bandeira. Saiu com a mão pro alto.

Eu fechei flanco, Caio segurou a boca da ponte.

Foi rápido, sem espetáculo: três quedas, dois recuos, uma rendição.

Ali, todo mundo entendeu que não tinha mais várias vozes.

Tinha só uma. E ecoava: Muralha e Loba.

3. O Domingo do Cativeiro.

Pegaram um dos nossos — um moleque que levava remédio.

Queriam vitrine de medo.

Entramos na casa estreita, quintal fedendo a cachorro.

Caio entrou pelo telhado, eu pela porta dos fundos.

Dois estalos, um sono forçado, porta aberta.

O garoto saiu com a sacola ainda na mão.

A rua silenciou, depois aplaudiu sem fogos.

Resgate não é show. É dever.

---

AZIZA, DIGUINHO E O FUTURO

Aziza se tornou coluna da quebrada.

Coordena escola, organiza horário, ensina paciência pra vizinhança.

Diguinho virou ponte.

Treina a molecada no galpão, corta marra cedo, mostra que respeito não é grito — é exemplo.

Eles tiveram a Safira. Menina com canela firme e olho reto.

Cresceu vendo que respeito não se pede: se sustenta.

---

JULIÃO, O OLHO DENTRO

Julião sumiu o quanto precisou.

Quando voltou, trouxe menos fala e mais mapa.

Construiu rede: gente dentro e fora, ligação em ponto cego, alerta que salva.

Quando a cidade morde, ele avisa antes do giroflex bater na viela: “fecha a janela”.

Nunca foi santo, mas ficou vivo.

E do lado certo — o nosso.

---

EU E O MURALHA

Quase rachamos uma vez.

Teimosia contra teimosia não dança, incendeia.

A gente aprendeu ritual: ele senta, limpa a arma; eu falo o que o rádio trouxe. Depois invertemos.

Rei e rainha?

Chama como quiser.

Eu prefiro zeladora.

Ele prefere vigia.

A coroa pesa menos assim.

Sim, tivemos uma filha: Aurora.

Nome dado num amanhecer sem tiro.

Não é enfeite, é lembrete: o dia volta, mesmo quando a madrugada insiste em ficar.

Aurora cresceu entre tatame e livro velho.

Sabe amarrar pão na cozinha da laje, sabe ouvir antes de falar.

Quando a sirene late, corre pro abrigo da Aziza sem drama — rotina salva.

---

MARCAS E MEDALHAS

As cicatrizes continuam.

Tem dia que coçam, tem noite que ardem com cheiro de pólvora.

Mas também tem barulho bom:

panela, bola batendo no muro, pagode distante, criança rindo sem medo.

Quando isso acontece, sei que valeu.

---

O MOTOR E A RESPOSTA

Às vezes ainda subimos de moto.

Eu na garupa, braço no peito dele.

Não é passeio. É ronda.

O barulho do motor abre respeito.

Na laje, olhando a cidade inteira, penso no preço.

Não é barato. Mas é nosso.

E quando perguntam se ainda aguentamos, a resposta sai simples, do portão de casa, sem grito:

— Aguenta. Porque ficou.

A LEMBRANÇA QUE QUEIMA

Às vezes, na laje de noite, quando a cidade lá embaixo parece um monte de vaga-lume cansado, eu ainda lembro.

Lembro do dia que saí daqui pela primeira vez com a farda limpa, acreditando que podia mudar o mundo de dentro do sistema.

Achava que disciplina, patente e relatório iam blindar minhas origens.

Achei que a favela não ia pesar no meu crachá.

Achei errado.

O que encontrei lá foi cobra de farda, verme de patente, gente com medalha na camisa e sujeira na alma.

Tentei lutar do lado deles, mas percebi rápido: não era luta. Era teatro.

E naquele palco, quem vinha de baixo só tinha dois papéis: morrer ou se vender.

Eu não aceitei nenhum.

---

A VOLTA QUE NUNCA FOI FUGA

Quando voltei, não voltei como quem perdeu.

Voltei como quem entendeu onde sempre esteve o meu posto.

A farda caiu, mas a pele nunca mudou: pele de quem nasceu aqui, pele que carrega cicatriz de beco, de esquina, de tiro.

Na volta, não trouxe diploma nem promoção.

Trouxe raiva, verdade e uma certeza: meu lugar não era atrás de mesa — era no front, com o povo, com o Caio, com quem não se vende nem se ajoelha.

---

O QUE FICOU

Hoje olho pro Conquista e vejo o que ficou.

Não é só muro pintado nem caveirão barrado.

É vida que segue.

É criança chutando bola sem medo de cair bala perdida.

É panela cheia, é música que toca sem ser interrompida por grito de sirene.

É mulher que anda de cabeça erguida, sabendo que se o mundo cair, tem gente que segura.

E eu aprendi que isso vale mais que qualquer farda.

---

A LIÇÃO QUE EU DEIXO

O tempo ensinou.

Não adianta querer ser maior que a rua.

A rua não esquece, não perdoa, não some.

Ela só te prova.

E a prova é simples:

ou você vira o que ela precisa, ou vira só mais um nome apagado na memória.

Eu escolhi ser o que ela precisava.

E ao lado do Muralha, não virei só Alana.

Virei Loba.

E junto dele, não fiz só parte de uma história.

A gente fez o Conquista virar reino.

---

ÚLTIMA PALAVRA

Se amanhã alguém perguntar o que eu aprendi indo e voltando, vestindo farda e depois vestindo a pele que sempre foi minha, eu respondo sem floreio:

— Aprendi que poder de verdade não vem de crachá, vem de permanência.

E eu permaneci.

✨ Palavra da Autora ✨

Aqui encerro mais um livro.

Foi sangue, foi lágrima, foi luta — mas acima de tudo foi história feita de coragem e resistência.

Espero de coração que cada página tenha queimado em vocês o mesmo fogo que queimou em mim ao escrever.

Se quiserem acompanhar mais lançamentos, novidades e bastidores das próximas histórias, me chamem:

📸 I*******m: @autora_val_veiga

📱 W******p: (24) 99966-66976

Obrigada por cada leitura, cada palavra e cada olhar que deram pra esse mundo que criei.

E lembrem sempre: a favela também escreve, também grita, também reina.

— Autora Val Veiga

Continue lendo este livro gratuitamente
Digitalize o código para baixar o App
capítulo anteriorpróximo capítulo
Explore e leia boas novelas gratuitamente
Acesso gratuito a um vasto número de boas novelas no aplicativo BueNovela. Baixe os livros que você gosta e leia em qualquer lugar e a qualquer hora.
Leia livros gratuitamente no aplicativo
Digitalize o código para ler no App