Capítulo 5 — Traição veste farda também
[Narrado por Alana] A missão era simples: ronda de rotina na Rua Alta. E simples demais, nesse lugar, já é sinal de armadilha. Cheguei cedo, viatura sozinha. Céu cinza, chão seco, favela ainda acordando. Desci com cautela, arma na mão, rádio no ombro. — “Base, aqui é Sargento Alana. Posição Rua Alta. Solicito retorno.” Nada. Silêncio. Tentei de novo. — “Base, copia?” Silêncio. De novo. De novo. Porra. Engatilhei. Fui andando devagar, bota arrastando poeira, o peito em alerta. Foi quando ouvi o ronco. Motos. Três. Não... quatro. Subindo o morro devagar, como quem sabe pra onde tá indo. Capacete fechado. Camisa preta. Olhos invisíveis. Mas intenção clara. Vieram pra me apagar. Rolei pro lado. Me escondi atrás da caixa d’água velha. Primeiro tiro passou raspando. Segundo, ricocheteou perto da minha perna. Respondi com dois disparos. Acertei o guidão de uma das motos. Capacete voou longe. Mas não foi suficiente. Um deles desceu. Alto. Forte. Arma em punho. Andando na minha direção como quem já sabe que sou só um corpo prestes a cair. Munição no fim. — “Base, aqui é Alana. TÔ SENDO ATACADA. RESPONDE, CARALHO!” Silêncio. E aí veio a dúvida: Ou falha técnica... Ou sabotagem. Clique seco. Fim de munição. Levantei com o que me restava. Chutei o barril de entulho na direção dele. Desviei por instinto. Ele veio. Na porrada. E eu também. A arma dele caiu. A minha já não servia. Virou soco, cotovelo, joelhada. Cada golpe meu era um grito que não saía. Ele me prensou contra a parede. Tentei puxar a faca da canela. Mas ele segurou meu braço. Foi ali, no choque do movimento, que eu vi. No pulso dele. O símbolo. O maldito símbolo. A caveira com o raio. O brasão do meu batalhão. — “Tu é polícia...” — sussurrei, cuspindo sangue. — “A gente tá em todo lugar, boneca.” — ele sorriu. Cínico. Podre. Traidor. O braço dele veio pro meu pescoço. Começou a apertar. Visão tremendo. Força falhando. Coração gritando. E então... O som. O disparo. Alto. Seco. Perfeito. PAH. Ele caiu. Seco. Inerte. Com a bala cravada entre as costas. Eu, no chão, tossindo, tentando respirar. Olhei em volta. Tentando entender. Passos pesados vieram se aproximando. Sombra grande. Presença que o ar respeita. E então ele apareceu. O homem que sempre chega quando o mundo decide me cuspir: Muralha. — “Tá viva?” — a voz firme, fuzil ainda quente. — “De novo...” — sussurrei, quase engasgando — “tu de novo...” Ele se abaixou. Passou a mão no pulso do corpo caído. Olhou pra mim. — “Reconheceu o símbolo, né?” Assenti, ainda ofegando. — “Então agora tu entendeu: a farda não é só tua. A farda também mata. E tem gente na tua linha que já trocou de lado faz tempo.” Fiquei ali. No chão. Entre sangue, pó e verdade. E ele? De pé. De volta. Mais próximo do que eu queria. Mais perigoso do que nunca. Porque agora… não era só eu contra o crime. Era eu contra o próprio sistema. E o único que me salvou... era o mesmo que um dia eu jurei prender. Ainda tava com o gosto do sangue na boca quando ouvi de novo. Moto. Uma. Depois outra. Mais duas. O ronco subindo pela ladeira como fera esfomeada. A porra da continuação do ataque. — “Levanta.” — ele disse. A voz cortando como navalha. Firme. Sem espaço pra dúvida. Tentei me erguer sozinha, falhei. Ele me puxou. Com força. Com pressa. Com a mesma mão que um dia me segurou pra não cair da laje quando a gente era só os dois contra o mundo. Mas agora o mundo era outro. E a mira tava no meu peito. — “Mais vindo?” — cuspi. Ele olhou pro alto da viela. — “Cinco, no mínimo. E não são de qualquer boca.” — “Então vamo acabar com essa merda aqui mesmo.” Ele me olhou. Quase sorriu. Quase. — “Sabia que tu ainda tinha pólvora na alma.” A primeira moto surgiu cortando a curva. O tiro veio seco, direto. A gente se separou por instinto, cobrindo flanco um do outro como se nunca tivesse desaprendido. Ele de AK. Eu com a Glock do cara morto. Lado a lado. Na mira. No ódio. Na precisão. Os dois primeiros caíram antes de perceber que tinham entrado na boca errada. — “Direita!” — ele gritou. Girei no reflexo. Disparo certeiro no capacete de um. Outro tentou sacar, tomou no ombro. Caiu chorando. Ficou. Muralha foi pra cima. Feito bicho que nunca sentiu medo de morrer. Ele atira com raiva, mas anda com calma. Como quem sabe que é rei, mesmo no meio do fogo cruzado. — “Quantos ainda?” — perguntei, respirando pela boca, sangue nos dentes. — “Agora? Nenhum com coragem de tentar mais nada.” E realmente… o silêncio voltou. O morro calou. Os poucos sobreviventes rastejaram pra longe. Deixando rastro de covardia na poeira. Eu, de pé. Ofegando. Mão firme na arma, mas a alma tremendo. Ele me encarou. Chegou perto. Perto demais. — “Te salvei de novo, Alana.” — “Não pedi.” — “Mas precisava.” Ele passou por mim, subiu na moto preta encostada no muro. Virou de lado, uma mão no guidão, a outra no joelho. — “Quando quiser me prender…” A pausa veio com o vento, junto com o cheiro de pólvora e memória suja. — “…sabe onde me achar.” E aí, os olhos dele buscaram os meus. Fundo. Sem aviso. Como faca cravando. — “Fagulha.” O apelido que ele inventou. O que ninguém mais ousava usar. Porque só ele conhecia o incêndio que mora dentro de mim. E com um último olhar, ele puxou o acelerador. A moto rugiu. E ele sumiu. De novo. Mas dessa vez, ele não levou só minha paz. Levou minha certeza. Levou meu chão. E deixou uma pergunta latejando no peito: Será que eu ainda quero prender ele… ou quero entender por que, mesmo com todas as cicatrizes, eu ainda respiro quando ele chega?