Capítulo 3 — Entre a farda e a ferida
[Narrado por Alana]
Meu nome é Alana Duarte.
Tenho 29 anos.
Sargento da Força Tática.
Número de registro: 398214-RJ.
Patente conquistada com suor, silêncio e sangue alheio.
Tenho 1,68 de altura, 58 quilos bem distribuídos entre o peso da disciplina e a cicatriz da infância.
Cabelo castanho claro, liso, sempre preso em rabo de cavalo.
Pele firme. Olhos escuros demais pra serem lidos.
Farda camuflada, colete de guerra justo no peito.
Na cintura, uma HK P30 carregada.
No bolso, documentos frios.
Na alma, veneno velho.
Não sou simpática.
Não sou dócil.
Não sou o que esperam quando escutam "mulher na linha de frente".
Eu sou a linha.
Fui forjada no grito.
Criada no morro que me expulsou.
Moldada pelo abandono, pela fome e por uma revolta que até hoje me alimenta.
Nasci no Morro da Conquista.
Filha de mãe lavadeira e pai desaparecido.
Meus brinquedos eram pedra e tampa de panela.
Meu teto, eternamente ameaçado de desabar.
Cresci com medo de polícia, fome de futuro e um nome gravado no osso:
Caio.
Ele era tudo que o morro tinha de abrigo pra mim.
Meu parceiro de crime infantil, meu cúmplice de sonho.
O único que enxergava quando eu fingia que tava forte.
O único que me abraçava sem pedir nada.
Aos 15, fugi.
Do morro.
De mim.
Dele.
Me escondi na caserna.
Aprendi a atirar, a marchar, a sobreviver dentro da ordem.
Troquei chinelo por coturno, lágrima por mira e coração por protocolo.
Me destaquei.
Primeira em curso de contenção.
Nota máxima em campo simulado.
Respeitada.
Temida.
Fria.
Mas tem gelo que não derrete — só afunda.
E o nome dele… ainda boiava dentro de mim.
Muralha.
Foi esse o nome que o mundo passou a temer.
Mas eu conheci antes da armadura.
Antes da tatuagem.
Antes do fuzil.
Quando ele ainda era só Caio.
O moleque que dividia pão seco e promessa.
Hoje ele domina o morro.
Hoje ele dita lei com a ponta do fuzil.
E hoje…
eu voltei.
Não por saudade.
Por ordem.
Por missão.
Mas principalmente, por ajuste.
— “Sargento Alana,” — disse o cabo do meu lado, enquanto subíamos a Rua do Campo. — “O pessoal lá de cima tá nervoso. Dizem que o clima tá estranho.”
— “O clima sempre tá estranho onde tem passado envolvido.” — respondi.
Ele me olhou de lado. Quis perguntar mais. Não teve coragem.
O morro me reconheceu.
Não na cara, mas na postura.
A favela sente quando uma das suas volta… armada.
Passei por viela que ainda carrega meu nome riscado no concreto.
Passei por esquina onde Caio me defendeu de três moleques maiores.
Passei por cada pedaço do inferno que me pariu.
E não hesitei.
Porque quem hesita aqui, morre.
Subi.
Com o olhar duro.
A respiração controlada.
O coração fingindo que esqueceu.
Mas ele não esqueceu.
Só se preparou.
Vi um dos aviõezinhos da boca me seguindo com os olhos.
Fingi que não notei.
Mas anotei o rosto.
Ali, entre barraco, grade e cachorro, eu sou a sombra da justiça.
A presença da lei.
A farda que anda com o dedo no gatilho.
Mas por dentro?
Sou só a mulher que voltou pro lugar onde perdeu tudo — e agora quer tudo de volta.
Inclusive ele.
Ou o que restou dele.
Porque se o Muralha ainda tiver o Caio preso em algum canto…
eu vou achar.
E se não tiver mais nada…
eu enterro.
Com bala.
Com lágrima.
Ou com a farda que hoje pesa mais que qualquer saudade.
(...)
Missão simples.
Teoricamente.
Ronda pelo Setor 5, contenção preventiva na Laje do Rato, e verificação de denúncia anônima sobre arma em circulação.
Mas favela não tem “simples”.
Favela tem código.
Favela tem leitura.
E quem não sabe ler, morre — ou pior, mata inocente.
Eu tava na frente da guarnição, radinho preso no ombro, olhos varrendo cada canto, cada janela, cada sombra.
Postura ereta, dedo no coldre, silêncio entre as palavras.
— “Mantenham formação. Sem dispersar. A contenção se faz com presença, não com alarde.” — minha voz cortou seco no rádio.
O soldado Vilela, novato transferido do batalhão da Zona Sul, achou que tava em série policial.
Quis brilhar.
— “Alana, aquela porta ali tá entreaberta. Posso verificar?”
Olhei pra ele.
Sobrancelha arqueada.
Tom gelado.
— “Aqui é sargento, não Alana. E não. Você só entra se eu mandar.”
Ele recuou meio sem graça, mas o ego dele…
o ego não recuou.
Avançamos mais três casas.
Subimos uma viela estreita.
Porta entreaberta.
O cheiro forte de maconha no ar.
— “Agora sim. Vilela, contenção à esquerda. Carvalho, comigo na entrada.” — ordenei.
Eu já tava perto da porta quando ouvi o estalo.
Vilela meteu o pé na frente.
Entrou na porra da casa antes de mim.
Sozinho.
Gritando igual cão doido.
— “POLÍCIA! PERDEU!”
O grito ecoou como tiro.
A senhora lá dentro caiu de joelhos com a criança no colo.
O marido dela, que tava de muleta, tentou se levantar e acabou caindo de cara no chão.
Cena de guerra por culpa de moleque mimado.
Entrei com o sangue fervendo.
— “VILELA!
TU TÁ MALUCO?!
QUEM TE AUTORIZOU A ENTRAR?!”
— “Sargento, achei que…”
— “ACHOU?
Aqui ninguém acha porra nenhuma. Aqui se cumpre protocolo.
Você arrombou a porta de civil sem mandado, meteu arma em mulher com bebê no colo e ainda por cima expôs toda a guarnição.
Sai da minha frente.”
Ele hesitou.
E aí veio o erro final:
ele me peitou.
— “Eu tô tentando ajudar, só isso. Não sou tua recruta pra levar esporro na frente de todo mundo.”
O silêncio da viela virou um eco tenso.
Até o cachorro da esquina parou de latir.
Me aproximei dele devagar.
O olhar no dele.
Firme.
Letal.
— “Você tá na minha equipe, Vilela.
Na minha operação.
No meu comando.
Se eu quiser, você sai daqui de viatura — ou de ambulância.
Você decide como quer terminar o turno.”
Ele engoliu em seco.
Tentou desviar os olhos.
Não conseguiu.
— “Agora vai pedir desculpa pra mulher.
E depois vai me esperar no posto de apoio.
Sem farda.
Porque você tá suspenso até segunda ordem.”
O resto da equipe ficou em silêncio.
Respeito pesa mais que arma.
E ali, o recado tava dado.
A mulher chorava baixinho.
A criança ainda assustada.
Eu me ajoelhei devagar, sem arma em punho, e falei com a voz que aprendi a guardar só pra quem merece escutar.
— “Desculpa pelo susto, senhora.
Tamo aqui pra proteger.
Não pra invadir.”
Ela me olhou com aquele misto de raiva e gratidão.
Mas não falou nada.
Nem precisava.
Favela reconhece quem é daqui — mesmo quando volta fardada.
Saí da casa com a respiração controlada.
O pulso ainda batia forte.
Mas por fora…
gelo.
Dei ordem pra terminar a ronda e recolher.
E antes de entrar na viatura, olhei pro alto do morro.
Onde eu sabia que ele tava.
Muralha.
Caio.
O dono da quebrada.
O que aprendeu a mandar quando eu aprendi a recuar.
Hoje, eu comando.
E se a guerra vier…
ela vai descobrir que mulher quando volta armada, não volta pra morrer.
Volta pra limpar.
Com farda.
Com sangue.
Ou com as duas coisas.