Voltei pra casa andando devagar, como se cada passo ainda carregasse o eco da conversa com Lorenzo. O céu estava mais escuro do que eu lembrava, mas havia uma leve brisa, dessas que parecem segurar a gente no lugar, pedindo silêncio antes da próxima decisão. Yves estava com Vanessa, e o apartamento estava mergulhado numa paz frágil quando cheguei. Aquela ausência de barulho que não é exatamente solidão, mas quase. Tirei os sapatos e fui direto pro quarto, como se ainda estivesse seguindo alguma trilha invisível deixada por ele — Lorenzo. A forma como me olhou. A calma na voz. A frase final, que ainda ecoava em mim: “Continue escrevendo. Às vezes, é assim que a gente entende o que sente.” Me sentei na cama com o caderno no colo e uma caneta já na mão. Mas não escrevi. Fiquei ali, olhando a página em branco. E então comecei a desenhar. Primeiro os traços soltos. Ombros largos. Um coque frouxo. Um olhar firme demais pra ser inventado. E depois, quase sem querer, minha mão desenhou
A manhã estava estranhamente leve. Yves tinha dormido bem — um milagre recente — e eu o havia deixado na creche da comunidade com a sensação de que, por algumas horas, o mundo podia respirar sem urgência. Cheguei ao escritório antes das nove, como sempre. A pequena sala compartilhada estava vazia, exceto pela pilha de pastas que alguém — provavelmente Rafael — deixara desleixadamente em cima da impressora. Liguei meu computador, ajustei a cadeira e comecei a revisar os e-mails do dia. Mais uma manhã de respostas automáticas, planilhas cinzentas e protocolos que pareciam se repetir infinitamente. Mas por algum motivo, eu estava inquieta. Meus dedos passavam pelas teclas sem real urgência, como se meu corpo estivesse ali, mas minha cabeça... não. > “Olá, Marina. Pode verificar os dados da apresentação do Elias para amanhã? A cliente de Milão pediu ajustes.” Suspirei. Traduzi, revisei, formatei. Tudo no piloto automático. A rotina, por mais estável que fosse, já não era suficien
Voltei da creche com Yves aninhado no meu colo, já quase dormindo, o rosto afundado no meu ombro como se o dia tivesse sido grande demais para ele. Meus passos eram lentos pela calçada, mais pelo turbilhão que ainda girava dentro de mim do que por cansaço físico. Leonardo. Ainda parecia surreal. Depois de todos esses anos, de tantas versões de mim mesma que eu fui criando, encontrar aquele pedaço da infância — vivo, sorrindo, real — bagunçava algo profundo. E ao mesmo tempo, era como se uma peça tivesse voltado pro lugar. Como se a Marina de antes me desse a mão por alguns instantes. Yves soltou um resmungo baixinho. Afaguei suas costas com delicadeza e beijei o topo de sua cabeça. — Tá tudo bem, pequeno. A gente só tá atravessando memórias — murmurei, mais pra mim do que pra ele. Em vez de ir direto pra casa, tomei o caminho da confeitaria. Como um ímã. Um refúgio. Um entrelugar onde eu podia respirar entre o que fui e o que estava tentando ser. --- Cheguei à confeita
As noites voltaram a ser silenciosas — não porque a vida ficou mais fácil, mas porque Yves, enfim, entrou numa nova fase. Dormia melhor, acordava menos, aceitava o colo sem exigir explicações do mundo. Eu ainda me surpreendia com a forma como aquele pequeno corpo ocupava tanto espaço dentro de mim. E mesmo assim, sempre sobrava um canto. Um canto onde Lorenzo começava a morar. Voltei à rotina com mais firmeza: trabalho de segunda a sexta, creche de manhã, turnos apertados, contas pagas no limite. Vanessa seguia me ajudando com uma leveza que eu agradecia todos os dias em silêncio. E à noite, depois que Yves dormia, eu me sentava com o caderno no colo, a caneta na mão, o café já frio na caneca esquecida na prateleira. Foi numa dessas noites que percebi. Entre listas, anotações soltas e tentativas frustradas de textos, havia desenhos. Rabiscos de alguém com olhos fundos. Traços firmes. Ombros largos. Um coque baixo, às vezes solto, às vezes não. Um perfil com a mandíbula marcada
A mensagem de Leonardo chegou no fim da tarde, entre um e-mail ignorado do trabalho e a terceira tentativa de Yves dormir. > [17:48] Leo: “Ei, baixinha. Vai estar livre amanhã à tarde? Tem alguém que quero te apresentar. Vai curtir.” Sorri. “Baixinha.” Ele era o único que ainda me chamava assim. Respondi com um simples: > [17:49] Marina: “Livre depois das 14h. Onde?” A localização veio em seguida. Um estúdio de tatuagem discreto, no centro antigo da cidade. No dia seguinte, deixei Yves com Vanessa. Dei as instruções habituais, com aquele aperto no peito de quem sabe que o mundo gira quando a gente vira as costas — mas fui. O estúdio era num prédio antigo com escadas estreitas, cheiro de tinta e música baixa ecoando nos corredores. As paredes estavam cobertas por quadros e esboços. Um universo inteiro de cor, sombra e arte urbana pulsando contra o cinza da cidade. Leo me esperava na porta, braços cruzados, com uma expressão que os anos não mudaram — o mesmo sorriso torto,
A chuva finalmente caiu enquanto eu caminhava de volta para casa, o céu carregado de nuvens escuras refletindo a intensidade da tarde. O encontro com Leo e Alec havia me deixado desconcertada. Não sabia o que pensar sobre o que havia acontecido, nem sobre a coincidência estranha entre os nomes, a galeria, a presença de Elijah, e a sensação de estar perdendo o controle sobre os próprios passos. Cheguei em casa e encontrei Yves já jantando, o pequeno engolindo as papas com a mesma intensidade com que ele abraçava o mundo ao seu redor. Vanessa me sorriu, ciente de que eu havia tido um dia longo. — Eu cuido dele por mais um tempo. Você parece precisar de um respiro — disse ela, quase como se me lesse. Agradeci, silenciosa. Não era só o cansaço físico que me incomodava. Era uma inquietação dentro de mim que não se explicava, uma sensação de que algo estava prestes a acontecer — mas ainda não sabia o que. Logo depois, fui para o meu quarto e comecei a me preparar para o que parecia
Os dias seguintes passaram como quem atravessa um corredor estreito entre dois mundos. De manhã, eu era Marina — secretária eficiente, cuidadora responsável, mulher de rotina exausta e coração cheio de dúvidas. À noite, havia outra coisa em mim. Um calor novo, aceso por mensagens discretas, olhares demorados e palavras não ditas. Lorenzo. Ele não era constante em presença, mas se fazia presente nos silêncios. Um “bom dia” enviado às 7h03. Um “a doceria fica melhor quando você vem” às 17h18. Frases simples, quase inocentes. Mas que me atravessavam como se carregassem muito mais do que diziam. E eu? Eu estava sorrindo mais. Dormindo menos. Pensando demais. Naquela terça, voltei à confeitaria depois do expediente. Yves tinha ido com Vanessa para visitar a avó dela, e eu, em vez de aproveitar o tempo livre para descansar ou lavar roupas, caminhei em direção ao azul suave da fachada como quem busca ar depois de prender a respiração o dia inteiro. Liam me viu chegando e nem precis
Voltei à doceria três dias depois do ateliê. Lorenzo não mandou mensagem depois daquela noite, mas também não precisava. Havia algo mais forte do que palavras circulando entre nós — o tipo de conexão que não se força nem se explica. Yves tinha ficado resfriado, o que significou noites picadas, lençóis trocados e meu corpo operando no limite da resistência. Ainda assim, depois de deixá-lo com Vanessa e me arrastar pelo expediente, fui para a confeitaria como quem volta ao único lugar onde ainda se sente inteira. Lorenzo estava lá. Sentado na mesa do canto, onde normalmente eu me sentava. Uma xícara de chá escuro diante dele, os dedos longos desenhando círculos invisíveis sobre o tampo de madeira. Quando me viu, fez um gesto discreto com a cabeça, convidando sem invadir. — Achei que você ia sumir — disse, assim que me aproximei. — Achei a mesma coisa de você. Ele sorriu. Menos do que um sorriso. Mais como um reconhecimento. — Quer sentar? Sentei. Liam nos observava de lo