Início / Romance / Entre Promessas E Cicatrizes / Capítulo 3 – Choque de Realidade
Capítulo 3 – Choque de Realidade

O silêncio voltou a ser a trilha sonora da nova rotina de Emma e Lucas. Após o jantar, a ausência de diálogo tornou-se ainda mais evidente, como se a tentativa frustrada de aproximação tivesse colocado entre eles uma camada extra de vidro — invisível, mas intransponível. Durante os dias que se passaram, eles viveram sob o mesmo teto como sombras que se evitavam.

Lucas saía cedo, voltava tarde, e mesmo quando estava no apartamento, mantinha-se recluso em seu escritório. Emma fingia não notar. Ela também mergulhava no trabalho com ainda mais afinco, decidida a manter sua promessa pessoal de que não seria arrastada para o limbo da decepção. Ele não queria conviver? Ótimo. Ela lidaria com ele como lidava com qualquer sócio difícil: com frieza estratégica.

Em uma tarde, enquanto finalizava a prova de tecidos no ateliê central da Moretti Fashion, Emma recebeu uma mensagem de Daniella:

“Podemos tomar um café hoje à tarde? Preciso conversar.”

Emma leu a mensagem duas vezes. Daniella raramente fazia convites espontâneos. Era uma mulher de gestos planejados, controlados. Aquilo, vindo dela, sinalizava algo importante. Respondeu de forma simples:

“Claro. Me diga o lugar e o horário.”

Às 17h, Emma chegou ao café discreto no bairro de Belgravia, reservado por Daniella. A matriarca Bennett já estava sentada em uma das mesas ao fundo, impecável como sempre, com os cabelos presos em um coque elegante e um lenço de seda em tons de vinho e azul amarrado ao pescoço. Quando viu Emma, ergueu-se e a cumprimentou com dois beijos formais.

— Emma, querida. Que bom que pôde vir. — Seu tom era cordial, mas os olhos denunciavam tensão.

— Claro. Fiquei curiosa com sua mensagem. Está tudo bem?

Daniella indicou o assento à frente com um gesto sutil. Esperou o garçom anotar os pedidos — um cappuccino para Emma, chá preto para ela — e só então começou:

— Eu tenho observado... algumas coisas. — Ela hesitou. — E sou direta demais para fingir que não notei o clima entre você e Lucas.

Emma apoiou os cotovelos na mesa e entrelaçou os dedos com elegância. Não demonstraria desconforto.

— Imagino que ele tenha comentado algo.

— Na verdade, não — respondeu Daniella, surpreendendo-a. — E é exatamente isso que me preocupa. Lucas tem evitado tocar no assunto. Diz apenas que “está tudo sob controle”.

Emma soltou um sorriso discreto, amargo.

— Isso soa como ele.

Daniella inclinou-se levemente para frente.

— Emma, eu sei que esse casamento foi uma construção. Um acordo. Mas dentro disso, havia algo mais importante do que o contrato: o respeito mútuo. E... sinceramente? Eu esperava mais do meu filho.

Emma manteve o olhar firme.

— Eu também, senhora Bennett. Mas infelizmente expectativas não garantem comportamento. Eu tentei.

— Eu acredito em você — disse Daniella rapidamente. — E é por isso que pedi para conversarmos. Eu quero que você saiba que tem minha confiança. Se algo estiver insustentável, não será você quem vai sair por baixo. Nem publicamente, nem dentro da família.

Havia sinceridade nas palavras da mulher à sua frente. Emma podia ver. E isso, de certo modo, a tocava. Mas ainda assim, havia limites sobre o quanto ela compartilharia.

— Obrigada por dizer isso. Mas eu não quero me fazer de vítima. Tenho meu orgulho e minha posição. Não preciso de proteção — afirmou. — Só quero que ele cumpra o que foi acordado. Descrição, convivência respeitosa e o mínimo de decência.

Daniella assentiu, mas seus olhos demonstravam inquietação.

— Conversei com Charles. Vamos chamar Lucas para jantar amanhã. Ele precisa de um choque de realidade.

— Boa sorte — Emma murmurou, pegando sua xícara de cappuccino. — Lucas não parece reagir bem a confrontos.

— Não, não reage. — Daniella sorriu com uma ponta de ironia. — Mas ninguém é imune a uma dose bem administrada de culpa.

As duas mulheres se entreolharam por um segundo. Pela primeira vez, Emma viu em Daniella algo além da frieza estratégica: uma aliada disfarçada. Por isso contou como estava sendo os dias pós casamento e sobre a tentativa de jantar e conversar que foi totalmente frustrada.

Na noite seguinte, Lucas chegou à casa dos pais pontualmente às 20h, como fora instruído. Esperava um jantar rotineiro, algum comentário sobre negócios, talvez uma crítica sutil sobre sua ausência nos eventos sociais da família. O que encontrou, no entanto, foi uma emboscada cuidadosamente preparada por seus pais.

A mesa estava posta com o requinte habitual: taças de cristal, porcelana fina, flores frescas ao centro. Charles estava sentado à cabeceira, já com uma taça de vinho em mãos, e Daniella o aguardava de pé, próxima ao lugar que seria ocupado por Lucas.

— Boa noite, filho — disse Charles, erguendo levemente a taça. — Sente-se, por favor. Precisamos conversar.

Lucas arqueou uma sobrancelha, mas obedeceu. Serviu-se de água e esperou que a comida começasse a ser servida antes de comentar:

— Vocês estão com esse tom cerimonioso demais. O que está acontecendo?

— Você. — Daniella foi direta. — Está acontecendo você.

Lucas largou os talheres e a olhou com ceticismo.

— Não entendi.

Charles pigarreou.

— Lucas, não vamos fingir. Temos ouvido rumores. Silêncios. E Emma, apesar de ser extremamente discreta, não parece exatamente feliz.

— Emma é prática. É o que sempre foi — respondeu Lucas, tenso. — Não achei que jantares românticos fariam parte do pacote.

Daniella apoiou as mãos sobre a mesa, firme.

— O problema não é você não levar flores, Lucas. O problema é ignorar completamente a existência da sua esposa. Não estamos falando de amor ou paixão. Estamos falando de postura. De imagem. De honra.

Lucas desviou o olhar.

— Eu estou me concentrando no trabalho. Esse casamento foi uma jogada, não uma história de conto de fadas.

— Jogadas exigem inteligência, meu filho — disse Charles, seco. — E inteligência inclui manter as alianças vivas. Emma não é qualquer mulher. Ela é nossa parceira de negócios, a herdeira dos Moretti e... sua esposa.

— Uma esposa que cozinha um jantar e é deixada falando sozinha — Daniella completou, sem rodeios. 

Lucas sentiu o golpe, embora tenha mantido o rosto impassível.

— Eu não pedi por isso.

— Ninguém pediu por nada, Lucas — Charles rebateu. — Mas aceitou. Isso significa compromisso. E se você continuar se comportando como um adolescente mimado, será você quem comprometerá o acordo. E, acredite, não permitiremos isso.

O silêncio se instalou por alguns segundos.

Lucas recostou-se na cadeira e olhou para o vinho, girando-o na taça.

— Eu não sei o que vocês esperam de mim.

— Esperamos que você trate Emma com respeito — disse Daniella. — Que comece, pelo menos, a agir como um adulto. Porque, se não for por convicção, que seja por conveniência. Ela não vai tolerar ser invisível. E, francamente, nós também não toleraremos isso.

A janta seguiu sem mais conversa. Lucas comeu pouco, visivelmente desconfortável. Saiu da casa dos pais com o peso do jantar nos ombros, mais pesado que qualquer reunião do dia.

Na manhã seguinte, Emma se preparou com mais esmero que o habitual. Usava um blazer azul-marinho com botões dourados e uma calça de alfaiataria impecável. Cabelos presos em um rabo de cavalo baixo, brincos discretos, maquiagem leve.

Era o dia de sua visita oficial à empresa dos Bennett para fechar o primeiro pedido de tecidos da nova coleção da Moretti Fashion. Um passo profissional significativo — e, para Lucas, talvez o primeiro encontro real com a mulher que ele havia jurado ignorar.

Ao chegar, foi recebida por uma assistente solícita que a guiou pelos corredores até a sala de reuniões. O prédio era moderno, funcional, mas sem alma. Tudo parecia milimetricamente planejado para parecer eficaz, mas impessoal.

Emma entrou na sala antes que Lucas chegasse, mas ele não apareceu, como os diretores da área de produção e logística já estavam presentes, todos preparados com planilhas, amostras e relatórios. Ela cumprimentou cada um com um aperto de mão firme, seu tom polido e direto. Em poucos minutos, iniciou a reunião como se estivesse em qualquer outro ambiente profissional — e, de fato, era exatamente isso que planejava.

Quando Lucas entrou, atrasado sete minutos, ela mal levantou os olhos.

— Podemos continuar ou precisamos reiniciar para que o senhor possa compreender? — perguntou, como se ele fosse apenas mais um membro da equipe.

Lucas parou por um segundo, surpreso com a frieza dela. Depois assentiu e sentou-se à cabeceira da mesa.

— Pode continuar.

A reunião durou pouco mais de uma hora. Emma apresentou o briefing da coleção, falou sobre as necessidades de texturas, cores e prazos. Os diretores anotavam tudo com atenção, fazendo perguntas técnicas. Lucas interveio duas vezes, apenas para reforçar algum ponto logístico. Em nenhum momento Emma se dirigiu a ele pessoalmente. Sempre olhava para a equipe. Sempre falava com clareza. Sempre neutra.

Ao final, recolheu seus materiais, agradeceu e se levantou pronta para sair.

— Agradeço a todos pela recepção. Enviarei os moldes para testes amanhã. Espero o primeiro lote em três semanas, conforme acordado.

Estava prestes a sair quando a voz de Lucas se fez ouvir:

— Emma, você tem um minuto?

Ela parou. Os olhos de todos se voltaram para os dois. Todos sabiam que eles eram casados, mas ao verem a forma como se trataram, acharam que o casamento não estava indo muito bem — o que era verdade. Por isso se olharam, como se conversassem se deveriam sair ou não da sala de reuniões. O ambiente ficou tenso.

Emma girou lentamente, mantendo a postura ereta.

— Claro.

Lucas fez sinal para que ela o seguisse, ela caminhou em silêncio, com calma, tentando manter a postura, mesmo ciente que todos estavam olhando para eles, para a distância entre eles. Lucas abriu a porta do seu escritório e esperou que Emma entrasse antes de fechar a porta e virar-se para ela que caminhou até a janela, olhando a paisagem, de costas para ele.

— Você me ignorou a reunião inteira — ele disse, quase divertido. — É sua nova estratégia?

Emma ergueu uma sobrancelha e virou-se olhando em seus olhos.

— Estratégia? — Ela riu. — Não. Só estou tratando você como gostaria de ser tratado: com indiferença.

Lucas cruzou os braços.

— Você sabe que isso afeta os outros, não só a nós dois.

— Sim. Mas, ao contrário de você, eu sei separar o pessoal do profissional. E, profissionalmente, você tem meu respeito. Nada além disso.

Ele respirou fundo, talvez irritado. Talvez impressionado.

— Almoce comigo.

Ela o encarou, surpresa pela proposta. O tom não era gentil, mas também não era arrogante. Havia algo incômodo ali. Talvez culpa. Talvez curiosidade.

— Por quê?

— Porque acho que devemos conversar de verdade. Sem plateia. Sem joguinhos.

Emma hesitou. Depois sorriu, quase imperceptivelmente.

— Está bem. Mas só se o restaurante tiver vinho. Vou precisar de uma taça ou da garrafa inteira.

E saiu da sala antes que ele pudesse dizer mais alguma coisa, só restou para Lucas enviar a ela por mensagem o endereço do restaurante.

Lucas escolheu um restaurante discreto em Mayfair, conhecido por sua carta de vinhos refinada e ambiente reservado. Chegaram separados, como se ainda estivessem em lados opostos de um jogo silencioso. Ele já estava sentado quando Emma entrou, com a mesma postura impecável da reunião. A host a conduziu até a mesa e, ao se sentar, ela cruzou as pernas com elegância.

— Você tem bom gosto, pelo menos nisso — comentou, observando o salão com decoração sóbria.

— Achei que um lugar calmo ajudaria.

Emma assentiu, pegando o cardápio, mas não o abriu.

— Fale. Foi você quem pediu isso.

Lucas se recostou na cadeira, estudando o rosto dela. Era a primeira vez que a olhava com atenção desde o casamento. Ela parecia ainda mais segura, mais controlada do que ele lembrava. A Emma do altar estava nervosa. Aquela ali era puro domínio.

— Não estou acostumado com esse tipo de relação. Casamento por... obrigação. Parceria forçada. E acho que estou fazendo tudo errado.

— Está mesmo. — Ela não suavizou a resposta, finalmente abrindo o menu, estava com fome e o vinho seria muito bem-vindo. — Mas continue.

— Meus pais acham que estou prejudicando o acordo. Estão certos. Mas o problema é mais embaixo. — Ele fez uma pausa, encarando a taça vazia à sua frente. — Eu fui criado para focar nos resultados. Cresci ouvindo que sentimentos atrapalham. E você... você me tira do prumo.

Emma ergueu uma sobrancelha, curiosa.

— Eu mal falei com você desde que casamos. Como exatamente eu te "tiro do prumo"?

Lucas sorriu, sem humor. Ele abriu a boca para responder, mas interrompeu sua fala quando o garçom aproximou-se, eles fizeram seus pedidos e Lucas bebeu um pouco da água que estava na sua frente.

— Justamente por isso. Você não chorou, não reclamou, não implorou por atenção. Continuou vivendo. Me tratou com frieza cirúrgica, e isso... isso me incomoda.

Ela pegou a taça de vinho recém-servida pelo garçom e tomou um gole demorado antes de responder:

— Lucas, eu me preparei para esse casamento como me preparo para uma fusão de empresas. Eu sabia que não seria romântico. Mas esperava respeito mínimo. Você não só ignorou isso, como me menosprezou.

Ele abaixou os olhos.

— Eu sei.

— Então, por que me chamou aqui?

Lucas hesitou. Era difícil nomear o que sentia, ainda mais difícil explicar. Mas algo naquela mulher, naquela frieza digna, lhe dava nos nervos — e o atraía ao mesmo tempo.

— Porque, pela primeira vez, eu quis saber quem você realmente é. E acho que só agora percebi que você é mais do que uma peça do acordo. É uma ameaça à forma como eu sempre lidei com o mundo.

Emma sorriu, mas sem doçura.

— Lucas, não estou aqui para ser seu projeto de autoconhecimento. Se você quer me conhecer, comece por não fugir. Comece por aparecer em casa. Por me olhar quando fala comigo. Por ouvir sem tentar controlar. Não estou te pedindo nada além do básico.

O silêncio se prolongou entre eles. O garçom trouxe os pratos — uma massa para ela, um risoto para ele — e se retirou em silêncio. O som dos talheres tomou o espaço por um momento, até que Lucas voltasse a falar.

— Você realmente acredita que esse casamento pode dar certo?

— Não sei. Mas acredito que podemos fazer disso algo que valha a pena. Para mim, sucesso é mais do que número em planilha. É sobre acordar ao lado de alguém que não me faz sentir sozinha dentro da própria casa.

Lucas a encarou, surpreso pela vulnerabilidade embutida naquela frase. Mas havia força ali também. A mulher à sua frente não estava suplicando afeto — ela estava colocando as cartas na mesa com clareza brutal.

— Está disposta a tentar?

Emma largou o garfo e o olhou com franqueza.

— Estou disposta a observar. Ver se há esforço real. Mas, Lucas... se for para fingir, prefiro que me diga logo. Eu não tenho tempo a perder com alguém que não sabe o que quer.

Lucas assentiu lentamente, com expressão mais séria.

— Justo.

O almoço terminou com menos tensão do que começou. Havia ainda uma distância entre eles, um abismo criado por mágoas recentes e pela própria natureza forçada da relação. Mas, pela primeira vez, havia também uma ponte — tênue, incerta, mas existente.

Ao se despedirem, Lucas segurou a porta para ela e a acompanhou até o táxi, ela recusou sua carona, dizendo que as empresas ficaram em direções opostas.

— Emma...

— Sim?

— Obrigado por ter vindo.

Ela apenas assentiu. Antes de entrar no carro, olhou para ele por um segundo mais longo do que o necessário.

— Você ainda tem muito a provar.

E partiu, deixando Lucas parado na calçada com o vento de Londres levantando levemente o colarinho do seu casaco. Pela primeira vez, ele não sentiu a cidade como pano de fundo dos seus dias automáticos. Ela parecia viva. Como Emma.

Continue lendo este livro gratuitamente
Digitalize o código para baixar o App
Explore e leia boas novelas gratuitamente
Acesso gratuito a um vasto número de boas novelas no aplicativo BueNovela. Baixe os livros que você gosta e leia em qualquer lugar e a qualquer hora.
Leia livros gratuitamente no aplicativo
Digitalize o código para ler no App