Lucas acordou antes do despertador naquela manhã. O quarto estava escuro, as janelas ainda fechadas, e o som do Tâmisa ao longe parecia o único sinal de vida fora daquela bolha silenciosa. Virou-se na cama e viu Emma dormindo de lado, o rosto parcialmente coberto pelos cabelos castanhos, a respiração tranquila. Havia algo profundamente injusto naquela paz. Algo que ele não sabia nomear — talvez culpa.
Desde a briga dois dias atrás, o silêncio entre eles era espesso. Mas não hostil. Era como se ambos estivessem evitando reacender a fogueira. Emma seguia sua rotina com eficiência militar. Chegava tarde, com o perfume da rua e da batalha. Lucas observava à distância, perguntando-se por que ela parecia estar conseguindo levar aquilo com tanta compostura enquanto ele se sentia um furacão contido.
Ele não a amava. Isso era um fato. Mas a imagem dela sentada sozinha no sofá, lendo relatórios e tomando chá, o incomodava mais do que deveria. Ela não cobrava carinho, nem presença constante. Só respeito. Só convivência. E, mesmo assim, parecia impossível para ele entregar o básico.
Estava distraído com os próprios pensamentos quando o telefone vibrou. Uma notificação do grupo da família Bennett. Seu pai mandara uma mensagem: “Ligue para sua mãe quando puder.” Nada urgente. Ainda assim, ele se levantou devagar, vestiu a camisa e saiu do quarto, decidido a caminhar um pouco antes de ligar.
Ele não sabia que assim que saiu pela porta, Emma recebeu uma ligação. O rosto de Clara Moretti apareceu na tela, e Emma sorriu automaticamente, até ouvir o tom de voz da mãe.
— Emma... amor. — Houve uma pausa. — É sobre a vovó.
O chão pareceu sair debaixo dos seus pés. O coração disparou antes mesmo que a notícia fosse dita por completo.
A avó paterna de Emma, dona Elena, havia sofrido um acidente vascular cerebral durante o café da manhã. Não resistira. Morreu em casa, dormindo no sofá, com um livro no colo. Clara chorava, e Emma sentia o corpo travar. Dona Elena era seu alicerce silencioso. A única que nunca a julgara. Que costurava com ela nas tardes de domingo e dizia com simplicidade: “Homem bom é aquele que te respeita em silêncio, mesmo quando não entende suas decisões.”
Emma desligou o telefone e ficou sentada no chão da sala por um tempo que não soube contar. Só se deu conta da presença de Lucas quando sentiu o toque leve de uma mão em seu ombro.
— O que aconteceu?
Ela o olhou. Estava ali, abaixado à sua frente, os olhos ligeiramente preocupados. Por um instante, Emma quis não dizer nada. Quis manter sua dor como algo particular. Mas a voz saiu, baixa, tremida:
— Minha avó... a dona Elena. Ela morreu.
Lucas franziu o cenho. Depois sentou-se ao lado dela, sem dizer nada de imediato. Apenas ficou. O silêncio que antes era um muro, agora era abrigo.
— Sinto muito — disse, por fim. — Eu gostava dela.
Emma assentiu, com os olhos fixos no chão. — Eu também.
— Quer que eu vá com você? — ele perguntou, sem hesitar.
Ela virou o rosto, surpresa. — Você tem reuniões... o jantar com os investidores de Paris...
— Isso pode esperar. Você não.
Foi a primeira vez que Emma o olhou com uma expressão que não envolvia controle, ou frustração. Apenas cansaço e gratidão.
No velório, Lucas permaneceu ao lado dela o tempo todo. Cumprimentou parentes que não via há anos, conversou com Clara com gentileza e respeitou o espaço de Emma. Observou como ela se portava firme diante da dor — como se estivesse acostumada a engolir o mundo sem reclamar. Ele se viu pensando no próprio avô, morto meses antes, e como aquela perda o desestabilizara mais do que qualquer coisa na vida. Pela primeira vez, não se sentia superior a Emma. Nem indiferente.
Na volta para casa, eles não falaram muito. Emma deitou no sofá, os pés descalços, e abriu uma garrafa de vinho tinto. Lucas sentou-se ao lado dela.
— Vai beber em silêncio ou me oferece uma taça? — perguntou, meio rindo.
Emma estendeu a taça sem olhar para ele. — Toma. Está forte.
Lucas bebeu. O vinho era intenso, como tudo o que envolvia aquela mulher. Ele ainda não sabia o que sentia por ela. Não era amor. Mas não era desprezo. E o ciúme que sentira ao vê-la conversando com o ex ainda queimava. Era posse? Era vaidade? Ou era por que, finalmente, começava a perceber que Emma não era só uma mulher bonita com boas conexões?
Ela era admirada. Era desejada. Era... muito mais do que ele esperava.
— Você está bem? — perguntou.
Emma deu de ombros. — Não. Mas vou ficar. Eu sou boa nisso.
Lucas encostou-se ao sofá. — Ser boa em ficar bem?
— Não. Em sobreviver.
As taças se esvaziaram rápido. O silêncio voltou. Mas não era incômodo. Era cúmplice.
— Eu odiei hoje — ela disse, de repente. — Ficar parada recebendo pêsames de gente que nunca me ligou. Ver minha mãe tentando ser forte. Sentir esse buraco aqui. — Apontou o peito. — E ainda por cima, tentar parecer profissional pra manter minha empresa de pé. Tô exausta.
Lucas ouviu tudo sem interromper.
— Você não precisa fingir comigo, Emma.
Ela riu, sem humor. — Mas preciso fingir pra você, não é? Pra que nosso lindo acordo de fachada não desmorone.
— Eu nunca pedi que você fingisse. Eu só... — Ele hesitou. — Eu só não sabia como lidar com tudo isso. Com você. Com essa vida.
Os olhos dela se encontraram com os dele. Por alguns segundos, nenhuma palavra foi dita. Só o som do vento do lado de fora, e o silêncio interno que gritava.
Emma se inclinou. E ele não recuou.
O beijo foi lento. Depois intenso. As roupas caíram pelo corredor enquanto caminhavam até o quarto. Não houve declarações, nem pedidos. Só um desejo bruto, nascido da frustração, da dor e da estranha conexão que começava a nascer entre dois estranhos forçados a viver como um casal.
Fizeram amor com pressa e entrega. Como se estivessem dizendo tudo o que não conseguiam com palavras.
Quando terminou, Emma deitou-se de costas, ofegante. Lucas ficou ali, ao lado dela, por alguns minutos. Olhou para o teto e tentou entender o que aquilo significava.
Não conseguiu.
Levantou-se, vestiu-se em silêncio e foi para o outro quarto.
Emma ouviu a porta sendo fechada e não se moveu. Não havia mais espaço para mágoa. Só para constatações.
O dia seguinte amanheceu cinzento, com o céu londrino ameaçando chuva. Emma se levantou cedo, como sempre, vestiu-se para o trabalho e preparou seu café sozinha. Lucas não estava no quarto. E, ao abrir a porta do outro, viu a cama arrumada — como se ninguém tivesse dormido ali. Um bilhete sobre a bancada da cozinha, com a caligrafia apressada dele, dizia apenas:
"Voltei cedo para resolver umas coisas com meu pai. Te ligo mais tarde. — L."
Emma encarou o papel por longos segundos. Sentiu o leve incômodo da decepção. Aquela ausência matinal depois da noite intensa — depois da forma como ele havia cuidado dela durante o velório — parecia um retrocesso. Não por querer que ele fosse romântico, mas por esperar, no mínimo, continuidade. A cortina puxada, a porta entreaberta, o silêncio. Tudo dizia mais do que o bilhete curto.
Ela tomou o café em silêncio, conferiu os e-mails e seguiu para o ateliê. Precisava se ocupar. Precisava não pensar.
À tarde, Emma estava em uma reunião com sua equipe quando Rafael apareceu na sala. O ex-namorado trabalhava com ela desde antes do casamento e, apesar de tudo, mantinham uma convivência civilizada — embora a intimidade entre eles incomodasse a Lucas.
Rafael entrou com a mesma confiança de sempre, usando uma camisa social dobrada até os cotovelos e uma pasta embaixo do braço. O olhar rápido percorreu a sala até encontrar Emma, e ele sorriu.
— Preciso de você por cinco minutos. Assunto urgente — disse, com aquele charme displicente que fazia parte da sua personalidade.
Emma assentiu. — Cinco minutos. E só.
Ela o seguiu até o corredor, e logo estavam encostados na pequena bancada de apoio do andar de cima, onde geralmente tomavam café durante as longas madrugadas de preparação de coleções.
— Sabia que você ia resistir — ele disse, estendendo um esboço. — Mas é um projeto novo, e achei que você ia gostar.
— Isso é um molde de gola dupla com sobreposição assimétrica? — perguntou, surpresa. — Tem potencial, Rafa. Quem desenhou?
— Eu. — Ele deu um sorriso convencido. — Voltei a esboçar desde que você saiu da criação. Vai que você me redescobre como estilista e não só como ex?
Emma riu, com um olhar rápido de reprovação. — Você não perde a chance de flertar, né?
— Não quando tenho motivos.
Ela suspirou, mais divertida do que deveria. — A gente já conversou sobre isso. Eu sou casada.
— Casada com um cara que some por dias e não aparece nem nos eventos importantes? — Ele balançou a cabeça. — Emma, eu te conheço. Você merece mais do que esse teatro.
Antes que ela respondesse, o som de passos os interrompeu. Lucas surgiu no corredor com duas xícaras de café em uma bandeja, terno impecável, expressão indecifrável. Por um segundo, os três ficaram imóveis. Emma piscou, surpresa, e Rafael ergueu uma sobrancelha com a arrogância típica.
— Lucas — ela disse, tentando soar natural. — Que surpresa.
— Eu vim te chamar para almoçar — respondeu ele, estendendo uma das xícaras. — Mas vejo que está ocupada.
Emma olhou da bandeja para Rafael, e depois de volta para Lucas.
— Estávamos falando de trabalho. Ele só me mostrou um novo molde.
— Claro — respondeu Lucas, sorrindo com frieza. — Vocês parecem bem... animados com o molde.
Rafael cruzou os braços, sem se incomodar com a tensão. — Nós sempre fomos uma boa equipe. Mesmo quando o ego dela tentava me sabotar.
— Um dom que ela ainda possui — comentou Lucas, sem desviar o olhar.
Emma pigarreou, cortando o embate. — Obrigada pelo café, Lucas. Mas hoje não consigo sair. Tenho que revisar os contratos com o fornecedor da Espanha e ainda ajustar o calendário da equipe. Podemos remarcar?
Lucas assentiu, mas seus olhos ainda estavam cravados em Rafael. — Claro. Não quero atrapalhar a química profissional de vocês.
Ele deixou a xícara sobre a bancada e se virou, indo embora sem mais uma palavra.
Emma o seguiu com os olhos até vê-lo dobrar o corredor. Uma sensação de incômodo cresceu no peito. Ele estava com ciúmes. Era óbvio. Mas, mais do que isso, estava magoado. E, no fundo, ela sabia que ele não estava errado por se sentir assim.
Naquela noite, Lucas não voltou para casa.
Emma esperou até às duas da manhã. Depois foi dormir no sofá da sala enquanto assistia à TV. Pela manhã, ao procurar o celular, viu que Lucas havia visualizado as mensagens que ela mandara. Nenhuma resposta.
Olhou algumas mensagens e reparou que havia uma mensagem visualizada que ela não lembrava de ter aberto. Abriu o chat com Rafael, e então entendeu tudo.
A última mensagem que Rafael havia mandado, durante a madrugada, provavelmente por estat bebendo, estava lá, destacada e lida, mas não havia sido lida por ela.
“Você merece mais do que isso. Ainda dá tempo de voltar a ser feliz. Eu te espero, mesmo que você ainda não saiba que quer voltar.”
Emma fechou os olhos. Lucas havia ido para casa de madrugada e havia lido. E agora fazia sentido o desaparecimento.
Sabia que Lucas tinha o hábito impulsivo de fugir ao invés de enfrentar. Mas também sabia que, se ele não voltasse logo, aquele casamento arranjado acabaria antes do primeiro aniversário.
Dois dias se passaram.
Silêncio. Nenhuma mensagem. Nenhuma ligação. Nenhum sinal dele.
Emma manteve sua rotina com a frieza de quem estava em campo de batalha. Mas por dentro, o estresse corroía. Estava cansada. Cansada da ausência, da instabilidade, das idas e vindas.
Na noite do segundo dia, quando Lucas finalmente passou pela porta do apartamento, Emma estava sentada no sofá com o notebook no colo. Ela o viu entrar. Viu a expressão cansada, o rosto por fazer, os olhos sombrios. Mas não se moveu.
Ele fechou a porta, deixou as chaves na bancada e tirou o casaco devagar. O silêncio entre eles era denso, carregado de coisas não ditas.
— Emma... — ele começou.
— Dois dias — ela o interrompeu, a voz firme. — Dois dias sem dar notícias. Sem responder nada. Você achou que isso era razoável?
— Eu precisava pensar.
— E eu? Eu não mereço o mínimo de respeito?
Lucas se aproximou. — Eu vi a mensagem. A do Rafael.
— E por isso você sumiu? Como um adolescente magoado?
— Eu não sou adolescente. Eu sou um homem tentando entender por que me incomoda tanto ver você com outro, mesmo sabendo que nosso casamento é só uma conveniência.
Emma levantou-se, fechando o notebook com força.
— Eu não aguento mais isso, Lucas. Não tem nem seis meses que a gente se casou e já parece uma década. Você é imaturo, instável e acha que tudo gira em torno do seu ego.
— E você? É fria, calculista e parece incapaz de sentir qualquer coisa!
— Melhor do que ser um homem que foge ao menor sinal de responsabilidade!
O silêncio que se seguiu foi abrupto. Intenso.
Lucas a olhou como se enxergasse algo nela pela primeira vez. E, sem pensar, atravessou a distância entre eles.
Emma recuou um passo. — Lucas...
Ele a segurou pela cintura e a puxou para si. O beijo veio antes da permissão. Veio com raiva, com saudade, com frustração. Ela resistiu por um segundo, depois se entregou.
Mas dessa vez o beijo não durou muito. Emma se afastou e cruzou os braços, furiosa.
— Você não faz ideia do que se passa na minha cabeça. E sinceramente, Lucas, eu estou cansada de tentar manter isso de pé sozinha. De colocar panos quentes enquanto você brinca de se afastar e voltar quando quer.
— Não foi isso.
— Foi exatamente isso!
Emma se aproximou, os olhos ardendo.
— Você vai, volta, transa comigo e depois some. Como se eu fosse algum prêmio de consolação quando sua vida está um caos. Mas se alguém me trata com carinho, se eu sorrio pra outro homem, você desaparece como um garoto mimado.
— Não foi assim que aconteceu.
— Você não sabe nem como aconteceu porque nunca conversa! Você foge! Sempre foge!
Lucas passou a mão nos cabelos, frustrado.
— Eu não fugi! Eu...
— Você sumiu por dois dias! — ela gritou. — E quer saber a pior parte? Eu entendo seu incômodo com a mensagem do Rafael. De verdade. Mas eu não fiz nada de errado, Lucas. Nada! Eu nem respondi! E mesmo assim, você me puniu com silêncio. Com desprezo.
Lucas a encarou, e pela primeira vez não havia arrogância em seu olhar. Só culpa. Cansaço. Confusão.
— Eu não sei o que estou fazendo — ele murmurou. — Não sei o que sinto. Às vezes acho que estou tentando... alguma coisa. Mas no minuto seguinte, me sinto sufocado. E quando penso que você pode estar melhor sem mim, me dá raiva. Não porque você é minha posse. Mas porque talvez você esteja mesmo melhor sem mim.
Emma riu, amarga.
— Que ótimo. Se você não sabe o que sente, imagine eu. Eu me casei com você por obrigação. Tentei fazer disso algo digno, pelo menos respeitoso. Mas nem isso você é capaz de sustentar.
Ela respirou fundo, as mãos trêmulas.
— São seis meses, Lucas. Seis meses de casamento. E eu já estou no meu limite.
Ele avançou um passo, instintivamente, como se quisesse segurar aquela palavra antes que ela caísse no abismo.
— Emma...
— Eu não sei mais se quero continuar.
— Você está dizendo que quer desistir?
Ela engoliu seco, o olhar firme apesar da dor que já se formava no peito.
— Estou dizendo que estou cansada. E que talvez você esteja mesmo certo. Talvez seja melhor assim.
Houve um segundo de silêncio. Então, desesperadamente, Lucas a puxou de repente, sem palavras, e a beijou.
Foi um beijo tenso, desesperado, quase dolorido. Como se ambos soubessem que estavam à beira do colapso, mas ainda assim não conseguissem soltar a mão do outro.
Emma nem tentou resistir, o gosto dele, o cheiro, a raiva e a paixão se misturavam demais. Ela correspondeu, com a mesma força. As mãos de Lucas seguravam sua cintura como se ela fosse escorregar, e os corpos colidiram com urgência.
Não havia sutileza.
Eles se beijaram como dois náufragos se agarrando ao último pedaço de madeira num mar revolto.
Quando se separaram, os dois ofegavam. As palavras ainda pairavam no ar, mas nenhuma delas foi dita.
— Eu não sei o que isso significa — Emma murmurou, a testa encostada na dele.
— Eu também não — Lucas sussurrou.
E naquele momento, pela primeira vez desde o casamento, admitiram juntos o que não sabiam