O relógio marcava 5h47 da manhã quando Helena acordou com o som seco da tosse da mãe. O quarto ainda estava escuro, mas ela já sabia que o dia começaria como todos os outros: com urgência, com dor, com silêncio.
Levantou-se devagar, os pés descalços tocando o chão frio. A casa era pequena, mas o peso que ela carregava ali dentro a fazia parecer imensa. Cada passo até o quarto da mãe era como atravessar um campo minado — nunca sabia se encontraria reclamações, desprezo ou apenas aquele olhar vazio que doía mais do que qualquer palavra. — Demorou — disse a mãe, sem sequer olhar para ela. Helena não respondeu. Pegou o copo d’água, os comprimidos, ajeitou os travesseiros. Tudo com a delicadeza de quem aprendeu a não provocar tempestades. A mãe tomava os remédios como se fosse um favor que Helena lhe devia. E talvez, no fundo, ela acreditasse que devia mesmo. O câncer havia sido diagnosticado há dois anos. Desde então, Helena se tornara enfermeira, cozinheira, faxineira e, acima de tudo, escudo emocional. A mãe, antes rígida, agora era amarga. A doença não a suavizara — apenas intensificara o que já existia. Naquela manhã, enquanto preparava o café, Helena observava os detalhes da cozinha com olhos cansados. O azulejo lascado perto da pia, a cortina amarelada pelo tempo, o rádio antigo que insistia em funcionar. Tudo ali parecia resistir ao tempo, assim como ela. O rádio tocava uma música triste, e ela se pegou cantarolando baixinho, como se a melodia fosse um abrigo. Mas não havia abrigo. Não ali. Sentou-se à mesa com uma xícara de café e olhou pela janela. O céu começava a clarear, e ela se perguntou como seria viver em outro lugar. Um lugar onde o amor não fosse uma obrigação, onde o cuidado não viesse com culpa. Ela não chorava mais com facilidade. Aprendeu a engolir o choro como quem engole o orgulho. Mas naquela manhã, algo nela se partiu. Uma lágrima escorreu, tímida, como se pedisse desculpas por existir. — Vai ficar aí parada o dia todo? — a mãe apareceu na porta da cozinha, apoiada na bengala. Helena se levantou imediatamente, como se tivesse cometido um crime. A mãe se sentou com dificuldade, e Helena serviu o café, cortou o pão, passou manteiga. Tudo em silêncio. — Você não sabe fazer nada direito — murmurou a mãe, empurrando o prato. Helena não respondeu. Sabia que qualquer palavra seria usada contra ela. Já tentara conversar, já tentara entender. Mas a mãe parecia se alimentar da amargura, como se a dor fosse a única coisa que a mantinha viva. Depois do café, Helena lavou a louça, limpou o chão, organizou os remédios. O dia seguia como um roteiro repetido, sem espaço para improvisos. Às 8h15, ela saiu para trabalhar. A livraria ficava a vinte minutos dali, e aquela caminhada era o único momento em que sentia o ar tocar o rosto sem cobrança. A livraria “Ponto & Vírgula” era pequena, antiga, e cheirava a papel envelhecido. O dono, seu Álvaro, era um homem de sessenta e poucos anos com o humor de um temporal. Resmungava por tudo — desde o posicionamento dos livros até o modo como Helena dobrava os recibos. — Chegou atrasada — ele disse, sem levantar os olhos do balcão. — São 8h58 — respondeu ela, com voz baixa. — Dois minutos é atraso. E atraso é falta de respeito. Helena suspirou e foi direto para a seção de literatura brasileira, onde precisava reorganizar os títulos. Gostava de estar entre os livros. Ali, as palavras pareciam ter mais sentido do que as que ouvia em casa. Lia trechos escondida, decorava frases, imaginava vidas que não eram a dela. Às 10h15, enquanto organizava uma pilha de romances de época, ouviu o som da porta se abrindo. Um homem entrou, alto, de cabelos escuros e expressão curiosa. Vestia uma camisa simples, mas havia algo nele que chamava atenção — talvez o modo como olhava os livros, como se fossem pessoas. Helena continuou seu trabalho, tentando não parecer interessada. Mas ele se aproximou da estante onde ela estava. — Você recomenda algum desses? — perguntou, apontando para os romances. Ela se virou, surpresa com a pergunta. Ninguém costumava pedir sua opinião ali. — Depende... você gosta de histórias que doem ou que curam? Ele sorriu. — As que doem costumam curar no final, não é? Helena sentiu o coração acelerar. Havia algo na voz dele — uma gentileza que ela não ouvia há muito tempo. — Então talvez “A última carta” — disse, entregando o livro. — É bonito. Triste. Mas bonito. — Helena, pare de conversar e vá organizar o estoque — gritou seu Álvaro do balcão. Ela se encolheu, como se tivesse sido pega em flagrante. — Desculpe — murmurou, virando-se para sair. — Não precisa se desculpar — disse o homem. — Seu chefe parece não gostar de finais felizes. Ela sorriu, sem querer. Um sorriso pequeno, mas verdadeiro. — Rafael — ele disse, estendendo a mão. — Helena. — Prazer em conhecer você, Helena. Espero que seu dia melhore. Ela caminhou até o estoque com o nome dele na cabeça. Rafael. Um nome simples, mas que parecia ter aberto uma janela dentro dela. O resto do dia passou em silêncio. Seu Álvaro resmungava, os clientes vinham e iam, e Helena se escondia entre caixas e prateleiras, tentando entender por que aquele encontro mexera tanto com ela. Ao chegar em casa, a mãe estava sentada no sofá, reclamando da dor nas costas. — Demorou. Vai me deixar morrer aqui? Helena entregou os remédios, preparou o jantar, ouviu as críticas. Mas algo nela havia mudado. Uma fresta de luz havia entrado. E mesmo que pequena, era suficiente para fazer o silêncio gritar de outro jeito. Naquela noite, enquanto chorava em silêncio, ela não sabia que alguém estava prestes a mudar tudo.