Capítulo 2 – Olhos que enxergam

O dia seguinte amanheceu cinzento, como se o céu refletisse o que Helena sentia por dentro. A mãe estava mais irritada que o normal, reclamando da dor, da comida, da vida. Helena cuidava dela com paciência silenciosa, mas por dentro, estava esgotada.

Enquanto lavava a louça do café da manhã, pensava no homem da livraria. Rafael. O nome ecoava como uma nota suave em meio ao ruído da rotina. Ela não sabia por que aquele breve encontro a tocara tanto. Talvez porque ele a olhou de verdade. Não como filha, funcionária ou cuidadora. Mas como alguém que existia.

Às 8h15, saiu para trabalhar. A caminhada até a livraria era o único momento em que respirava sem medo. O ar da manhã, mesmo úmido, parecia mais leve do que o da casa. Passava pelas mesmas ruas, pelas mesmas janelas, mas agora havia uma expectativa silenciosa dentro dela.

Ao chegar, seu Álvaro já estava no balcão, com a cara fechada de sempre.

— Hoje quero o estoque limpo. E sem conversa fiada com cliente — disse, sem sequer dizer bom dia.

Helena assentiu e foi direto para os fundos. O estoque era apertado, cheio de caixas mal organizadas e cheiro de papel antigo. Mas ali, entre livros esquecidos, ela se sentia menos esquecida.

Por volta das 10h, ouviu o sino da porta tocar. O som era o mesmo de todos os dias, mas algo nela se acendeu. Espiou discretamente pela fresta da estante e viu Rafael entrando. Ele olhava ao redor com calma, como quem procurava mais do que um livro.

Seu Álvaro o cumprimentou com um aceno seco, e Rafael caminhou até a seção de literatura brasileira. Helena hesitou, mas saiu do estoque com uma caixa nos braços, fingindo que precisava reorganizar os títulos.

— Helena — ele disse, com um sorriso. — Que bom te ver de novo.

Ela tentou disfarçar a surpresa, mas não conseguiu evitar o sorriso tímido.

— Achei que não voltaria.

— Eu também. Mas aquele livro que você recomendou... me fez pensar. E você também.

Helena sentiu o rosto corar. Não estava acostumada a ser lembrada. Muito menos a ser motivo de pensamento.

— Espero que tenha gostado da leitura.

— Gostei. Mas fiquei com uma dúvida — ele disse, pegando outro livro da prateleira. — Você acredita que as pessoas podem mudar de verdade?

Ela olhou para ele, depois para o livro em suas mãos. Era “O peso do pássaro morto”, de Aline Bei. Um livro sobre dor, perda e transformação.

— Acho que algumas pessoas mudam. Outras só se revelam.

Rafael assentiu, como se aquela resposta fizesse sentido demais.

— E você? Já se revelou?

Helena engoliu em seco. Ninguém nunca havia perguntado isso. Ela vivia escondida — atrás da doença da mãe, do mau humor do chefe, da rotina que a sufocava.

— Ainda não — respondeu, quase num sussurro.

— Então talvez esteja na hora.

Seu Álvaro pigarreou alto atrás do balcão, e Helena se afastou, voltando para o estoque. Mas Rafael a seguiu.

— Posso te ajudar com essa caixa?

— Não precisa — ela disse, mas ele já estava segurando o outro lado.

Juntos, colocaram a caixa sobre a mesa. Rafael olhou ao redor, curioso.

— Você passa muito tempo aqui?

— Mais do que gostaria. Mas menos do que preciso.

— E o que você gostaria?

Helena hesitou. Não sabia como responder. Nunca se permitira pensar nisso com profundidade.

— Gostaria de... respirar. Sem culpa.

Rafael não disse nada. Apenas olhou para ela com uma expressão que misturava compreensão e respeito. Era como se enxergasse além das palavras, além dos gestos.

— Você parece carregar o mundo nos ombros — ele repetiu, como no dia anterior.

— E você parece querer entender esse mundo — ela respondeu.

Ele sorriu.

— Talvez eu só queira conhecer quem o carrega.

O silêncio entre eles era confortável. Helena sentia algo novo — uma espécie de leveza que não vinha dos livros, nem do café, nem do rádio antigo da cozinha. Era como se, pela primeira vez, alguém a visse inteira.

Rafael comprou dois livros e se despediu com um aceno gentil.

— Até logo, Helena.

Ela voltou ao estoque com o coração acelerado. O resto do dia passou em ritmo estranho — seu Álvaro reclamava, os clientes vinham e iam, mas ela estava em outro lugar. Um lugar onde existia. Onde era vista.

Ao chegar em casa, a mãe estava deitada no sofá, com os olhos semicerrados.

— Trouxe meus remédios?

— Sim, estão aqui.

— E o jantar?

— Vou preparar agora.

— Você só serve pra isso mesmo.

Helena não respondeu. Mas dessa vez, as palavras não doeram tanto. Havia algo dentro dela que começava a se fortalecer. Algo que não dependia da aprovação da mãe, nem da ausência de carinho.

Naquela noite, enquanto lavava a louça, pensou em Rafael. No modo como ele a olhou. Nas perguntas que fez. E pela primeira vez em muito tempo, sentiu vontade de escrever. Pegou um caderno antigo, sentou-se à mesa e começou a rabiscar frases soltas.

“Talvez eu tenha asas. Só não aprendi a usá-las.”

Sorriu. Pequeno. Mas verdadeiro.

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