####O INFERNO DE EVY

O Quarto Perdido

Alguns meses haviam se passado desde que minha mãe partiu, e a casa já não era a mesma. O silêncio que antes era paz virou peso. O cheiro das flores dela já não estava mais nos corredores, e os empregados que me viram nascer tinham desaparecido, substituídos por rostos estranhos. E, de repente, a vida que eu conhecia virou um lugar onde eu não cabia mais.

Meu pai se casou com Clarice. Não demorou muito. Ela, que antes era apenas a secretária dele, agora ocupava o lugar de esposa, dona da casa. E junto com ela veio a filha, Lilibeth Marie.

Lilibeth não se parecia nada com a mãe. Tinha cabelos escuros, olhos castanhos e um corpo comprido, magro. Não era bonita, não chamava atenção por nada em especial… mas Clarice a tratava como se fosse uma princesa. Uma princesa mimada, a quem tudo era permitido.

Foi nesse tempo que o inferno começou.

— Eu quero ficar no quarto dela. — ouvi Lilibeth dizer certa vez, apontando para o meu quarto. O quarto que minha mãe tinha decorado com tanto carinho. O quarto que guardava cada memória nossa.

Meu coração se apertou.

— Não. Esse quarto foi a mamãe quem arrumou para mim. — respondi, tentando manter a firmeza.

Lilibeth sorriu torto.

— Não importa. Agora é o meu quarto.

E antes que eu pudesse reagir, Clarice decretou como uma sentença:

— Você vai dormir no quarto ao lado, Eve. Lilibeth precisa de espaço.

Corri até meu pai.

— Papai, aquele quarto era o que a mamãe preparou para mim! Eu não quero sair de lá.

Ele suspirou, cansado, como se eu fosse apenas um incômodo.

— Minha filha, deixe a Lilibeth ficar. Você pode usar o quarto ao lado.

— Mas papai… foi a mamãe quem arrumou… — tentei mais uma vez, sentindo a garganta arder.

— Deixe, Eve. — a resposta veio seca, definitiva.

E assim, eu perdi meu quarto.

Depois disso, nada mais me pareceu meu. Lilibeth me empurrava nos corredores, e quando eu caía, ela ria alto:

— Você tropeçou porque é cegueta! Esses óculos grossos te deixam parecendo uma coruja desastrada.

Os novos empregados, que antes deveriam me proteger, riam junto. Ou fingiam não ver. A cada dia, mais um pedaço do meu mundo era arrancado.

E papai, ele nunca estava em casa para ver.

Os anos seguintes foram uma sucessão de injustiças.

Lilibet passou a estudar na mesma escola que eu. Enquanto eu vivia para os livros, dedicada de corpo e alma, sempre a primeira da turma, ela só queria brincar. Era fútil, irresponsável e vivia cercada de bajuladores. Suas notas eram vergonhosas. Mas Clarice sempre dava um jeito de encobrir.

Não sei como, mas ela conseguia trocar os boletins. O meu desempenho, sempre impecável, aparecia como se fosse o de Lilibet. E o dela, medíocre, vinha em meu nome.

Meu pai me chamava, desapontado:

— Estou decepcionado com você, Ive. Sua irmã sempre tira boas notas e você… só notas baixas. O que está acontecendo, minha filha? Desde que sua mãe morreu, você não é mais a mesma.

Eu reunia coragem e respondia, com a garganta apertada:

— Papai, quem não é o mesmo desde que a mamãe morreu é o senhor. O senhor se casou em poucos meses, trouxe Clarice para dentro de casa e deu tudo à Lilibet. Até as minhas notas vocês me tiraram.

Ele apenas balançava a cabeça, como se eu fosse ingrata.

— Não minta, minha filha. Sua mãe ficaria triste com você.

E eu me calava. Não adiantava insistir. Todos os empregados, agora escolhidos por Clarice, ajudavam a sustentar a mentira. Bastava acontecer algo errado e lá estava Lilibet chamando a empregada Lili:

— Não foi, Lili? Foi a Ive que mexeu e quebrou.

— Sim, senhora — a empregada respondia sem hesitar.

E eu levava a bronca. Castigos. Portas fechadas. Silêncio.

Assim, os anos foram passando.

Concluí o High School aos dezesseis anos e entrei cedo na faculdade, enquanto Lilibet ainda repetia anos, sustentada pelas mentiras da mãe. Estudei com afinco, e antes mesmo de completar vinte e um anos, já estava formada, com louvor. Ninguém parecia perceber, porque eu continuava escondida atrás dos óculos grossos, do aparelho de metal e dos cabelos sempre presos sob gorros e lenços.

Quando completei dezoito anos, papai me levou ao médico.

— Está na hora de tirar esse aparelho e ver como está sua visão — disse ele.

O doutor explicou:

— O aparelho só será removido definitivamente aos vinte e um anos. Até lá, apenas manutenção. E a correção da miopia… também pode esperar um pouco mais.

Eu aceitei, como sempre.

Mas Lilibet não perdeu a oportunidade:

— Pode fazer o que for, ela sempre vai ser horrorosa.

Ela já tinha dezenove anos, o corpo de moça feito, o olhar arrogante. E eu… eu ainda era a “feia”.

Foi pouco depois disso que meu pai e Clarice ofereceram um jantar ao senhor Clifford e ao neto dele, Leon. Eu nunca vou esquecer aquele dia.

Eu estava de gorro, óculos grossos, roupas folgadas — o retrato da vergonha que me impuseram. Entrei tímida no salão e, então, vi-o.

Leon.

Ele tinha trinta anos, era loiro, de olhos azuis tão profundos que me lembrei do mar nas ilhas que minha mãe descrevia quando eu era pequena. Alto, imponente, ele parecia um príncipe saído dos contos que eu só ousava ler escondida no sótão.

Meu coração disparou. Não consegui desviar o olhar.

Lilibet, é claro, percebeu.

— O que você está olhando pra ele? — sibilou, debochada. — Você não está vendo a sua feiura? Ele nem te enxerga!

Minha pele ardeu de vergonha. Eu baixei os olhos, pronta para me encolher de novo. Mas, antes que o silêncio me esmagasse, ouvi a voz firme dele.

— Por que você está sendo desagradável com a sua irmã? — Leon perguntou, olhando direto para Lilibet.

O mundo parou. Foi a primeira vez que alguém me defendeu.

Naquele instante, algo floresceu em mim. Eu me apaixonei. Não pelos olhos azuis, nem pela beleza que todos enxergaram — mas porque ele me viu. Ele me viu de verdade.

O Jantar do Destino

Ele me olhou diretamente, os olhos azuis firmes nos meus, como se não houvesse ninguém mais na sala.

— Você é a Ivy, não é?

Engoli em seco e apenas assenti.

Um sorriso discreto surgiu em seus lábios.

— Nossa… você cresceu. Já é uma moça. A última vez que a vi, sua mãe ainda estava aqui conosco. Quando foi mesmo, vovô? Foi quando assinamos aquele contrato, não foi?

O senhor Clifford, sentado com a postura de patriarca, confirmou com um leve aceno:

— Sim, Leon. Foi exatamente naquele dia. Ivy, minha querida… você sabe que é a noiva do meu neto, não sabe? Quando completar vinte e um anos, vocês se casarão.

O barulho dos talheres caiu sobre a mesa. Lilibet deu um salto, os pés batendo no chão como uma criança mimada.

— O quê?! Como assim ela vai se casar com ele? Ele é lindo e ela é horrorosa!

O silêncio congelou a sala. Eu quis desaparecer, engolir o choro que queimava a garganta. Mas então a voz firme do Leon cortou o ar:

— Lilibet, basta. O meu avô fechou um acordo com o avô da Ivy, e eu vou honrar esse compromisso.

Ela arregalou os olhos, indignada, mas ele continuou, firme:

— Se você vê a Ivy apenas pelo exterior, é porque não enxerga nada além da superfície. Eu a vejo de outra forma.

Meu coração parou. Ninguém nunca tinha dito isso sobre mim.

Leon virou-se então para meu pai, o olhar sério:

— Com todo respeito, Jeffrey, a sua filha Lilibet é extremamente desagradável. Não sabe se portar, é deselegante, e jamais deveria ser permitida a desfazer da irmã desse jeito, ainda mais diante de convidados.

O rosto de Clarice endureceu, os lábios trêmulos de fúria. Meu pai pigarreou, incomodado, e limitou-se a dizer:

— Lilibet, pare com isso. Se comporte. Esses não são modos.

Foi a única coisa que saiu da boca dele.

Eu abaixei os olhos, tentando esconder o rubor que subia ao meu rosto. Mas dentro de mim, uma chama acendia. Pela primeira vez, alguém me defendera. Pela primeira vez, eu não me senti invisível.

E foi ali, naquele jantar, diante da fúria da Clarice, da indignação de Lilibet e do silêncio resignado do meu pai, que eu soube: eu estava apaixonada por Leon.

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