No escritório Assunção & Assunção, a sexta-feira seguia tranquila. João revisava um contrato antigo quando Roberto entrou sorrindo de orelha a orelha, sentando-se à frente da mesa do pai com um brilho no olhar que João não via há muito tempo.
— Aconteceu alguma coisa? — João perguntou, fechando a pasta e tirando os óculos. — Essa sua cara aí... parece até que ganhou na loteria. — Melhor que isso. — Roberto apoiou os cotovelos nos joelhos, inclinando-se animado. — Acho que encontrei a mulher da minha vida. João arqueou uma sobrancelha, interessado. — É mesmo? — Sério, pai. A Alicia é diferente. Linda, inteligente, tem uma risada que me desmonta, um jeito doce e firme ao mesmo tempo. Me deixa à vontade, mas também me tira o chão. Não sei explicar. Só sei que eu quero ela. Quero pra minha vida. Pra casar. João levantou-se e foi até o filho, emocionado. Apertou seu ombro, depois o puxou para um abraço cheio de orgulho. — Então já ganhou minha bênção antes mesmo de eu conhecer. Você merece isso, meu filho. Depois de tudo... está na hora de ser feliz. — Quero que vocês se conheçam o quanto antes. Prometo marcar um jantar. — Estarei esperando — João respondeu sorrindo. — Já estou curioso com essa mulher que conseguiu fazer você pensar em casamento. --- Mas o tal jantar nunca aconteceu. Dias depois, enquanto Roberto e Alicia passavam mais um fim de semana juntos no apartamento dela, o noticiário anunciou: Lockdown decretado. A cidade inteira pararia. Sem transportes, sem visitas, sem previsão. — Acho que você vai ficar preso aqui comigo — Alicia comentou, segurando a xícara de chá e sorrindo de canto. — Pior coisa do mundo, né? — ele respondeu, puxando ela pela cintura e beijando seu pescoço. Ficar preso não foi ruim. Pelo contrário. Foi o começo de algo ainda mais forte. A convivência intensa fez o sentimento crescer como fogo em mato seco. Eles dividiram a cama, as refeições, os silêncios. Viraram parceiros de séries, de jogos de cartas, de receitas improvisadas. Cozinharam macarrão, bolos e até pão — riram quando o primeiro ficou duro como uma pedra e comemoraram quando o segundo saiu fofinho. — Se a vida continuar assim, eu caso com você amanhã — Roberto disse um dia, vendo Alicia de avental, suja de farinha. — Se prometer lavar a louça, eu aceito. E assim os dias se tornaram semanas, e as semanas, um mundo só deles. Isolados do resto, mas inteiros um no outro. Longe do escritório, longe de João. E ainda sem saber o que o destino estava preparando. Porque, às vezes, a vida gosta de brincar com ironias... e algumas verdades, por mais inevitáveis, gostam de chegar no momento mais inesperado. --- Os dias se sucediam num ritmo calmo, quase encantado. A cidade estava silenciosa do lado de fora, mas dentro do apartamento de Alicia, havia música, riso e calor. Roberto e Alicia acordavam tarde, sem pressa. Ela fazia café enquanto ele colocava uma playlist suave para tocar. Dividiam o pão que aprenderam a fazer juntos — e que agora já saía perfeito — e conversavam sobre tudo: infância, sonhos, medos, traumas. Cada conversa parecia encaixar como peças de um quebra-cabeça que finalmente fazia sentido. Às vezes, Alicia o observava em silêncio, distraído na varanda, e o coração dela aquecia. Tinha algo nele que ia além da beleza: era o cuidado, a atenção, a forma como ouvia o que ela dizia, como se cada palavra dela tivesse valor. E Roberto… se sentia em casa. Pela primeira vez na vida, estar com uma mulher não era só prazer — era paz. Era desejo com profundidade, carinho com tesão, admiração com cumplicidade. Ele amava o jeito dela andar descalça pela casa, o modo que cuidava das plantas, como penteava o cabelo ao sair do banho. Ficavam horas no sofá, deitados um no outro, assistindo filmes ou apenas trocando carinhos. Riam até das bobagens. Discutiam a melhor forma de dobrar roupa, brigavam pelo controle remoto, faziam as pazes na cozinha e se redescobriam na cama. O sexo entre eles era constante, sim, mas também era terno, conectado, cheio de entrega. Roberto aprendeu os ritmos do corpo dela. Alicia sabia quando ele precisava de um abraço silencioso mais do que qualquer palavra. O amor não foi dito de forma apressada, mas nas atitudes, nos gestos, nas entrelinhas. Numa tarde de domingo, deitados no tapete da sala com taças de vinho ao lado, Alicia acariciava os cabelos dele, e Roberto, com a cabeça no colo dela, suspirou: — Eu poderia viver assim o resto da vida. Ela não respondeu. Apenas sorriu e beijou a testa dele com doçura. Naquela noite, enquanto Alicia dormia abraçada a ele, Roberto ficou acordado olhando para o teto. Era aquilo. Era ela. O que ele e o pai sempre conversaram... quando a mulher certa aparecesse, ele saberia. E ele sabia. Ele queria Alicia para sempre. O lockdown, que parecia um problema para o mundo, se tornava o cenário perfeito para dois corações que se encontraram no tempo certo, mesmo que com passados cheios de pontas soltas. Mas o tempo… o tempo sempre cobra. Enquanto Roberto e Alicia viviam aquele conto de amor moderno dentro do apartamento dela, do outro lado da cidade João passava os dias em isolamento com a fiel empregada, Dona Cida, que cuidava da casa há anos. O silêncio da mansão parecia mais pesado do que nunca, e a ausência do filho só era amenizada pelas chamadas de vídeo noturnas. — E aí, como foi o dia? — João perguntava todas as noites, com a máscara pendurada no pescoço e um frasco de álcool sempre por perto. — Especial, pai… mais um dia desses que não parece ter nada demais, mas vira tudo só porque estou com ela — Roberto respondia, com aquele sorriso bobo de quem está completamente entregue. João sorria junto. Ele ouvia o filho falar da rotina simples: as manhãs com panquecas, as tardes de filmes e riso, as noites de cartas e vinho. O brilho nos olhos de Roberto deixava claro que ele não estava vivendo um simples romance de quarentena. Era algo maior. — Ela é diferente, pai. É leve, é engraçada, é carinhosa… Não tem um dia igual com ela. Mesmo dentro do apartamento, tudo parece novo com a Alicia. João ficava em silêncio por alguns segundos, absorvendo cada palavra. Aquilo acalmava o coração dele. Desde a morte da esposa, via o filho levar a vida amorosa com leveza demais, sem se entregar de verdade. Agora, parecia que Roberto estava pronto para algo real. — Fico feliz por você, meu filho. E já te disse: quando o homem encontra a mulher certa, ele sabe. É como se algo dentro da gente gritasse: “é ela”. — É exatamente assim que me sinto, pai. João desligava a ligação com o coração aquecido, mesmo rodeado por solidão. Seu único contato era com Dona Cida, que cuidava dele como uma mãe. — Vai passar, seu João. Logo o senhor vai poder abraçar seu filho, conhecer a moça... — ela dizia, enquanto limpava os móveis pela milésima vez no dia. — Espero que sim, Cida. Quero ver esse amor acontecer de perto. Ver meu filho casar, formar família... Já pensou? Ser avô? Dona Cida sorriu, mas logo apontou o borrifador com álcool para ele. — Vamos lá, né? Máscara no rosto e álcool nas mãos. Grupo de risco, lembra? João soltou uma risada cansada e obedeceu, como vinha fazendo todos os dias. Isolado, cuidadoso, com saudade da vida lá fora, mas alimentado pelas palavras do filho, que a cada ligação parecia mais apaixonado. Ele só não imaginava que o destino tinha planos ainda mais surpreendentes — que o amor do filho estava prestes a mexer com o passado que ele pensava ter deixado para trás. E esse reencontro, quando viesse, teria gosto de revelação.