Mundo de ficçãoIniciar sessão
Ágata acordou por volta das seis da manhã, como fazia todos os dias. O despertador tocou baixo, quase respeitoso, enquanto a casa ainda dormia. Levantou-se sem demora, já acostumada à rotina que não lhe dava escolhas. Tomou um banho rápido, vestiu o uniforme habitual da loja de EPI’s: calça jeans bem ajustada ao corpo e o coturno firme nos pés. Seus cabelos, presos em tranças, eram práticos e faziam parte de quem ela era. Um toque suave de perfume, discreto, mas marcante.
Em seguida, acordou Filipe. Arrumou o filho com carinho, ajeitou sua mochila e o levou até a escola. Um beijo na testa, um “se comporte” sussurrado, e então seguiu para mais um dia de trabalho. Às sete horas em ponto, Ágata chegou à loja. Encontrou Poliana, sua amiga inseparável, já sentada em frente ao computador, como sempre chegava uma hora antes. Cumprimentaram-se com um sorriso cansado, daqueles que só quem divide a rotina entende. Logo começaram o ritual diário: organizar prateleiras, conferir produtos e deixar a música tocar baixinho, preenchendo o silêncio do lugar. As horas passaram sem grandes novidades, até Poliana sair para o almoço. Foi então que, entre um atendimento e outro, surgiu um cliente completamente mal-humorado. Irritado com a falta de estoque de garrafas de água, ele despejou toda a sua frustração em Ágata. Gritos, xingamentos e palavras duras ecoaram pela loja. Quando ele finalmente saiu, deixando o ambiente pesado, Ágata já estava com os olhos marejados. Para piorar, o patrão, Leonardo, apareceu logo em seguida. Em vez de apoio, veio mais cobrança, mais palavras ríspidas, como se a culpa fosse dela por algo que nunca esteve sob seu controle. Foi demais. Ágata desabou. Chorava de soluçar, sentindo-se pequena, injustiçada e cansada demais para reagir. Ela não percebeu quando Henrique entrou por um dos corredores da loja. Cliente habitual, ele chamava atenção sem esforço. Alto, cerca de um metro e oitenta, cabelos loiros escuros em um corte elegante e contemporâneo, barba ruiva bem cuidada. O perfume que exalava era marcante, envolvente, e o sorriso, naturalmente cativante. Ao ver Ágata naquele estado, seu semblante mudou. — O que aconteceu? — perguntou, com a voz firme, porém gentil. Entre lágrimas e soluços, Ágata contou tudo. Cada palavra dita com dor, cada injustiça revivida. Henrique ouviu em silêncio, atento, sem interromper. Seus olhos carregavam compaixão. Depois de alguns segundos, ele falou: — Ágata, meu negócio está crescendo, os documentos se acumulam todos os dias. Tenho uma família, obras para supervisionar e um escritório em fase final de construção. Preciso de alguém que me ajude. Vejo que você é esforçada, dedicada e sei que faz faculdade de Administração. Gostaria de trabalhar para mim? Você seria a única entrevistada e contratada. Prometo um ambiente confortável, climatizado e sem frustrações com clientes. Ágata mal conseguia acreditar. — Claro que aceito — respondeu, ainda chorando. — Assim que seu escritório ficar pronto, pedirei demissão daqui. — Ótimo. Daqui a dois meses voltarei para confirmar sua escolha — disse ele, com um leve sorriso. Henrique saiu pela porta sem comprar nada. Parecia ter entrado ali apenas para acalmá-la, como se soubesse exatamente do que ela precisava naquele momento. Mesmo sem acreditar totalmente naquela proposta, Ágata continuou trabalhando. Mas, pela primeira vez em muito tempo, o coração carregava algo novo: esperança. Após a saída de Henrique, o silêncio voltou a ocupar a loja, quebrado apenas pelo som baixo da música que ainda tocava ao fundo. Ágata respirou fundo algumas vezes, tentando recuperar o controle. Passou as mãos no rosto, enxugando os últimos vestígios das lágrimas, mas os olhos inchados insistiam em denunciar o que havia acontecido. Pouco depois, Poliana retornou do almoço. Assim que entrou, percebeu algo diferente. Apesar da pele negra de Ágata continuar radiante como sempre, seu semblante estava abatido, e o brilho habitual nos olhos havia se apagado. — Ágata, o que aconteceu? — perguntou, aproximando-se. — Você está com cara de quem chorou litros. Ágata hesitou por um instante, mas já estava mais calma. Encostou-se levemente no balcão e contou tudo. Falou do cliente exaltado, dos gritos, das acusações injustas e, por fim, das palavras duras de Leonardo. Enquanto falava, a voz ainda carregava resquícios de dor, mas também um certo alívio por dividir aquilo com alguém. Poliana ouvia atenta, e a cada frase seu semblante se fechava ainda mais. — Eu não acredito que ainda existam homens desse nível — disse, indignada. — E acredito menos ainda que o Leonardo tenha sido capaz de te culpar por algo que é totalmente responsabilidade dele. Ela cruzou os braços, respirando fundo antes de continuar. — Faz tempo que a gente cobra estoque nessa loja. Tudo vive acabando ou em falta. A clientela cresce, mas o estoque só diminui. Ele compra mercadoria para as duas lojas usando um único CNPJ, faz a divisão como quer e, quando falta na outra, simplesmente vem aqui e tira sem dar explicação nenhuma. E a culpa é sua? Só porque você está aqui desde a inauguração? Poliana balançou a cabeça, inconformada. — Quem ele pensa que é? Ágata abaixou os olhos por um instante. No fundo, ela sabia que a amiga tinha razão. Mas o medo de perder o emprego sempre falou mais alto. Ainda assim, as palavras de Henrique ecoavam em sua mente como uma promessa distante, porém reconfortante. Talvez aquela não fosse apenas mais uma tarde difícil. Talvez fosse, sem que ela soubesse, o início de algo que mudaria tudo.






