Mundo ficciónIniciar sesiónCapítulo 5 — A Marquesa e o Veneno
O convite chegou pela manhã, envolto em um envelope espesso, o lacre dourado ainda quente. Nenhum remetente — apenas uma caligrafia firme, quase aristocrática: “Senhor Rafael Duarte, é com prazer que o convido para um jantar íntimo em minha residência. Assunto de interesse mútuo. — C. A.” Não precisei decifrar as iniciais. Camila de Alencar. A mulher que a sociedade chamava de marquesa, um título inventado, herdado apenas do ego e da fortuna que a sustentava — mas que ela usava como se corresse em suas veias. ⸻ O Jantar A residência dela não era uma casa, era uma encenação. Lustres franceses pendiam do teto como cristais de gelo. Tapetes persas abafavam os passos e o ar cheirava a flores caras misturadas com perfume e desconfiança. Camila me recebeu na escadaria com a elegância de quem já ensaiou aquela cena muitas vezes. — Rafael, querido. — A voz soou como um brinde. — Sente-se. Hoje, quem fala é você. Serviu-me vinho tinto, o mesmo tom do batom que desenhava seu sorriso. — Sobre o que exatamente? — perguntei. — Sobre a mulher que anda te rondando. O nome caiu como um veneno bem-dosado: — Helena Padilla. A chama da lareira vacilou, e por um instante o salão inteiro pareceu escurecer. Camila se inclinou, as joias faiscando como pequenas lâminas. — Você é jornalista, eu sei. Gosta de histórias. Mas há histórias que não querem ser contadas. — Está preocupada com meu bem-estar? — ironizei. Ela riu, mas os olhos não acompanharam. — Estou preocupada com o que Helena faz com os homens que acreditam que podem compreendê-la. Dei um gole no vinho. — E o que ela faz? — Usa. Encanta. E quando o brilho acaba… ela apaga a luz. O silêncio entre nós pesou como chumbo. A lareira estalou, cuspindo faíscas. Camila apoiou os cotovelos na mesa. — Você viu o retrato, não viu? A semelhança é inegável. A mulher do quadro, a mulher do baile, a mulher do espelho… são todas a mesma. — Está dizendo que Helena é uma Padilla? — Estou dizendo que esse nome reaparece a cada geração quando há poder para ser tomado ou sangue para ser cobrado. E sempre… sempre com olhos como os dela. A maneira como falou fez meu estômago girar. Ela pousou a mão sobre a minha, os anéis tilintando como sinos de advertência. — Você ainda pode escolher, Rafael. Escreva sobre ela. Exponha o que é. Ajude-me a arrancar a máscara. Tirei a mão devagar. — Ou talvez seja só mais uma que quer me usar contra ela. Camila sorriu — felina, perigosa. — Todos usamos alguém, querido. A diferença é quem sobrevive ao jogo. ⸻ O Veneno Invisível O jantar terminou com taças meio cheias e verdades pela metade. Enquanto eu me levantava, ela deslizou uma garrafa em minha direção. — Leve. É um vinho raro. Padilla — de Sevilha. Envelhecido no mesmo tipo de barril que guardava o Coração de Fogo. Fingi indiferença, mas o nome me feriu como lâmina. Do lado de fora, o vento noturno carregava cheiro de chuva. As luzes da mansão brilhavam demais, como olhos vigiando. No portão, um jardineiro parou o trabalho e me observou em silêncio. O olhar era vazio, distante — como se soubesse algo que eu não devia saber. No bolso, o celular vibrou. Mensagem sem número: “Não confie na Marquesa. Ela já escolheu perder.” Olhei de volta. Camila estava na sacada, taça na mão, a silhueta recortada pela luz dourada. Sorriu de longe — um sorriso que podia significar adeus ou cuidado. A cidade parecia respirar comigo, cúmplice e ameaçadora. Cada sombra me seguia um pouco mais de perto. ⸻ Entre a Proteção e a Armadilha No caminho de casa, abri o envelope do convite. Dentro, algo que não estava antes: um pequeno cartão, papel negro, sem texto, apenas um selo em relevo — a mesma flor gravada no anel de Helena. O coração bateu pesado. No espelho retrovisor, por um segundo, juro que vi um carro preto atrás de mim… e olhos, dois olhos dourados observando, imóveis. Quando cheguei ao prédio, o porteiro dormia. O corredor estava frio demais. No apartamento, a garrafa que Camila me dera repousava sobre a mesa. A rolha tinha sido retirada. E o aroma… era o mesmo perfume que Helena usava. Fiquei parado, ouvindo o relógio bater, e percebi que a pergunta deixava de ser “em quem confiar”. A pergunta agora era outra: Em qual veneno eu já bebi — e nem percebi?






