O nome da ONG estava impresso na fachada de concreto cru como um grito que o tempo não conseguiu apagar. Miguel leu três vezes, como se os olhos tentassem negar o que o peito já reconhecia. “Instituto Elias Lins”.
Elias. Lins. Duas palavras. Duas cicatrizes. Ele sentiu o ar rarefeito ao redor, como se o mundo o forçasse a respirar o que tentou sufocar a vida inteira. O padrasto. O traidor. O homem que prometeu ser pai e partiu antes que Miguel aprendesse a se proteger. Que lhe deixou a frustração de quem foi adotado por obrigação, não por amor. Miguel não precisava de lembranças. Precisava de ação. Mas o nome... o nome latejava feito uma maldição que acabava de ser desenterrada. — Sr. Fontes, está tudo bem? Questionou Gustavo, sempre servil, sempre conveniente. Miguel piscou devagar, como quem volta de um lugar perigoso dentro de si. — Esse nome... Ele disse, rouco. — Por que ninguém me contou? Gustavo hesitou. E a hesitação dele custava caro. — Achamos que era coincidência. O Instituto foi fundado há mais de vinte anos. O Elias... morreu na guerra civil que assolou o país vizinho. É um nome comum... — Não pra mim. Miguel girou os ombros, espantando o peso. Mas ele continuava ali. — Esse homem foi meu padrasto. Um ex-militar. Um idiota que acreditava em “missões humanitárias”. Que achava que amor era só alimentar e dar teto. Que abandonou minha mãe sem olhar pra trás. O silêncio era denso. — E a Anyellen? Miguel questionou, de súbito. — O quê? — A mulher. A diretora da ONG. Ela é o quê dele? Gustavo coçou a nuca. — Oficialmente, sobrinha. O pai dela morreu antes do nascimento dela. Elias criou a menina. Dizem que era como uma filha... — O irmão dele. Miguel murmurou, e a mente fez conexões mais velozes do que gostaria. — O irmão morreu na guerra. Elias sumiu. A menina cresceu órfã. E agora... agora ela está no meu caminho. O acaso era exigente demais para isso ser coincidência. Miguel se aproximou da fachada e tocou, com os dedos firmes, a letra "E" de Elias. Não era só um nome. Era uma dívida. Um fardo. Um espelho invertido onde ele via tudo o que odiava e tudo o que talvez, no fundo, temesse ser. A sede da ONG era simples, mas sólida. Estrutura antiga, paredes brancas, pichações artísticas que Miguel antes desprezava, agora encarava com um incômodo diferente. Um incômodo que tinha nome. Rosto. E olhos que diziam não sem precisar gritar. Ele não sabia que tipo de laço unia Anyellen a Elias. Mas agora entendia por que ela não vendia. Por que ela resistia. Aquilo não era apenas uma sede. Era um santuário. E ela não ia ceder fácil. Miguel voltou ao carro sem dizer mais nada. No banco traseiro, digitou no celular com rapidez. Buscou registros antigos. Fotos. Arquivos de adoção. Relatórios militares. Uma imagem. Elias sorrindo ao lado de uma criança — Anyellen. Outra. Elias segurando Miguel nos braços. Os mesmos braços que um dia sumiram sem deixar bilhete, explicação ou saudade. E ali, no escuro da limusine, Miguel entendeu. Não era sobre um terreno. Era sobre um fantasma que havia voltado para cobrar. Só que ele não era mais aquele garoto frágil esperando aprovação. Ele era o homem que decidia quem ficava e quem caía. — Avise aos advogados — disse ao motorista. — Quero tudo sobre a ONG. Papéis. Doações. Voluntários. E principalmente... sobre ela. Anyellen Lins. O motorista assentiu. Miguel recostou-se. E enquanto a cidade passava do lado de fora, ele sussurrava para si mesmo, como um voto silencioso: — Dessa vez, Elias... eu é que vou vencer. O carro avançava pelas ruas da cidade com a suavidade de quem não sabe a batalha que carrega no banco de trás. Miguel mantinha o olhar fixo na janela, mas via muito além do vidro. Não era o tráfego que lhe interessava. Nem os prédios espelhados, os semáforos ou o céu sem nuvens. Ele via Elias. Via a imagem daquele homem que lhe deu exemplo de homem com sobrenome, sem nunca lhe dar presença. Via a sombra de uma infância onde tudo era disciplina, silêncio e ausência de afeto. E agora, como se o destino tivesse um humor doentio, o nome dele voltava estampado em muros que ousavam resistir ao seu império. Mas o que mais o incomodava não era Elias. Era ela. Anyellen. Seu rosto, até então desconhecido, surgia com uma força inesperada na memória. A maneira como o olhou, como se soubesse o que ele escondia por trás do terno de alfaiataria e do olhar gelado. Como se ela o tivesse lido. Inteiro. E a cada lembrança do olhar dela, mais a raiva e o fascínio se confundiam dentro dele. Ela era a porta trancada de um quarto que ele jurou nunca mais visitar. Mas agora queria entrar. Queria entender quem ela era. Por que Elias, entre tantos, havia criado justamente aquela menina. Por que ela se tornara o obstáculo mais difícil que ele já enfrentou e o mais provocante. O celular vibrou no bolso. Uma mensagem de Gustavo: "Confirmamos. ONG fundada por Elias Lins após a morte do irmão. Anyellen registrada como sobrinha. Algumas doações feitas por empresas em nome de ‘clientes ocultos’. Pode haver mais coisas escondidas." Miguel sorriu. Um sorriso duro, carregado de intenções. — Cliente oculto... Murmurou. — Eu aposto que isso tem o dedo de Álvaro. Álvaro Munhoz, seu sócio mais antigo, com quem partilhava mais rivalidade do que confiança. Se havia alguém capaz de fazer doações escondidas, mascarar valores e manipular papéis, era ele. Miguel fechou os olhos por um instante, tentando organizar o quebra-cabeça. A ONG recebia repasses que saíam da própria empresa. Esses repasses estavam escondidos nos relatórios contábeis, justamente onde ninguém procuraria. Por quê? Por que financiar uma instituição que barrava os planos do próprio grupo? A resposta não vinha clara. Mas o nome dela, de novo, se impunha. Anyellen. Ele precisava vê-la outra vez. Não como empresário. Não como o homem que queria o terreno. Mas como Miguel, o homem que precisava vencer o passado para ter paz no presente. O carro parou em frente ao prédio comercial onde funcionava o escritório central da holding. — Reúna tudo o que puder até amanhã. Disse ao motorista. — E me coloque cara a cara com ela. — A senhorita Lins? — É. Quero ver o que acontece quando uma mulher que diz não encontra um homem que não aceita. O motorista assentiu. Miguel entrou no prédio com passos firmes. Mas, por dentro, uma pergunta ecoava em um tom mais baixo e mais perigoso: E se ela for o que te falta, Miguel? E se, pela primeira vez, o controle não bastar? Ele não tinha essa resposta ainda. Mas descobriria. Nem que, no processo, precisasse reviver todas as dores que tentou enterrar. Nem que precisasse aprender a diferença entre dominar… e respeitar. E pela primeira vez, Miguel Fontes sentiu; bem no fundo, que talvez fosse ela quem estivesse no comando da história. E isso… isso o excitava mais do que ele queria admitir. .