Capitulo 07

O carro deslizava pelo asfalto como uma lâmina de barbear na seda. Silencioso. Mortal.

Lá dentro, o ar parecia ter mudado de densidade. Estava mais grosso, carregado com o cheiro de couro italiano, uísque envelhecido e daquele perfume dele — sândalo e chuva — que parecia invadir meus poros.

Eu me afundei no banco, o couro macio me abraçando, mas meus músculos estavam retesados, prontos para correr ou lutar. O paletó dele ainda estava sobre meus ombros, um peso quente que me lembrava constantemente a quem pertencia aquele território.

Peter não estava me tocando. Ele estava recostado no banco oposto, as pernas longas esticadas, ocupando o espaço com a arrogância natural de um rei. Ele me observava. Não com luxúria, mas com uma curiosidade clínica que era infinitamente mais perigosa.

— Você disse que ia me contar uma história — murmurei, minha voz soando rouca na penumbra do carro. Eu precisava quebrar aquele silêncio antes que ele me sufocasse.

Peter girou o copo de cristal que tinha tirado do bar do carro — sim, o carro tinha um bar. O líquido âmbar girou, hipnótico.

— Histórias são perigosas, Alice. Elas mudam dependendo de quem conta. — Ele tomou um gole lento, os olhos cinzentos fixos nos meus. — A versão do mundo é que Peter Blackwood é um recluso excêntrico que compra empresas para destruí-las.

— E a sua versão?

— A minha versão? — Ele sorriu, e o carro pareceu ficar menor. — A minha versão começa há seis meses . Em uma galeria caindo aos pedaços no Bixiga, com o chão rangendo e cheiro de mofo.

Ele pausou. O "suspense" era palpável.

— Eu não costumo frequentar esses lugares. Mas naquela noite... eu estava inquieto. O tédio é uma doença, Alice. E eu sou um doente crônico. — Ele se inclinou para frente, apoiando os cotovelos nos joelhos. — Eu entrei. Vi telas medíocres. Vi pretensão. Vi lixo.

— E então? — perguntei, presa na narrativa dele, na voz "envolvente" que parecia acariciar minha mente.

— E então eu vi o canto da sala. Havia uma tela pequena. Mal iluminada. — Os olhos dele brilharam na escuridão. — Vermelho e preto. Não havia forma. Não havia figura. Havia apenas... dor.

Minha respiração falhou. 'Fúria Silenciosa'.

— Eu parei na frente dela — ele continuou, a voz baixando para um sussurro reverente. — E pela primeira vez em anos, eu não vi tinta. Eu vi um grito. Eu vi alguém que estava se afogando e, em vez de pedir socorro, decidiu incendiar a água.

A descrição dele era tão precisa, tão íntima, que senti como se ele estivesse tocando minha pele nua.

— Eu comprei a tela. Mas isso não foi o suficiente. — Ele colocou o copo de lado. — Eu precisava saber quem tinha tanto ódio guardado no peito. Quem tinha tanta fome.

Ele estendeu a mão e, devagar, tocou a ponta do meu joelho. O contato foi elétrico, atravessando a seda do meu vestido.

— Eu encontrei você, Alice. Eu vi você pintando muros de madrugada. Eu vi você cuidando da sua mãe. Eu vi você lutando contra o mundo com nada além de latas de spray e teimosia.

— Você me espionou — acusei, mas não havia raiva na minha voz. Havia fascinação. Havia medo.

— Eu te estudei. — Ele corrigiu. A mão dele subiu um pouco, o polegar desenhando círculos na minha coxa. — E eu descobri que a "artista" era ainda mais fascinante que a arte.

— E é por isso que estamos aqui? — Minha voz tremeu. — Porque eu sou o seu novo projeto de ciências?

— Não. — Ele apertou minha perna, um toque possessivo. — Estamos aqui porque eu cansei de assistir. Estamos aqui porque eu quero participar.

O carro fez uma curva suave. A cidade passava lá fora, borrões de luz sem significado.

— Você falou de "liberdade" lá no terraço — ele disse. — Mas me diga, Alice... o que você faria com ela? Se eu te desse o dinheiro agora, sem o contrato, sem mim... o que você faria?

Eu abri a boca para responder, para dizer que salvaria minha mãe, que pintaria... mas as palavras morreram.

— Você continuaria lutando — ele respondeu por mim. — Você continuaria gritando em telas que ninguém entende. Você continuaria sozinha.

Ele se moveu. Rápido como uma sombra. Ele saiu do banco dele e deslizou para o meu lado.

O calor dele me envolveu. O cheiro dele me afogou.

— Eu não estou te oferecendo apenas a vida da sua mãe, Alice. — Ele pegou minha mão, entrelaçando nossos dedos. A palma dele era quente, áspera, real. — Estou te oferecendo um amplificador. Eu quero dar à sua voz um volume que o mundo não poderá ignorar.

— E o preço? — sussurrei, hipnotizada pela proximidade dele, pelos lábios dele a centímetros dos meus. — O preço é a minha alma?

— A alma eu já tenho — ele murmurou, roçando o nariz no meu pescoço, inalando meu cheiro. — O quadro na minha parede já levou ela. O preço, minha artista... é a sua rendição.

Eu senti meu corpo amolecer contra o dele. A "provocação" estava ali, mas misturada com uma atração fatal.

— Eu não sei me render, Peter.

Ele se afastou o suficiente para me olhar. O sorriso dele era triste e faminto ao mesmo tempo.

— Eu sei. É por isso que vai ser tão divertido tentar.

O carro parou. O movimento cessou.

Mas o acordo... o acordo ainda não estava fechado. Eu ainda tinha a caneta. E ele sabia disso.

A porta se abriu. O mundo exterior invadiu nosso casulo.

Peter saiu, estendendo a mão para mim novamente.

— Bem-vinda à minha torre, Alice. — Ele olhou para o prédio gigantesco acima de nós. — Onde a gravidade funciona de um jeito diferente.

Eu olhei para a mão dele. Olhei para o prédio.

Eu não disse "sim". Eu não disse "não".

Eu apenas peguei a mão dele, sabendo que estava entrando na boca do lobo, e que talvez, só talvez... eu quisesse ser devorada.

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