Mundo ficciónIniciar sesiónOs flashes ainda piscavam quando Rafael pousou a mão nas costas de Valentina.
O sorriso dele continuava impecável frio, estudado, quase ensaiado até a última câmera ser desligada. Ela ainda sentia o calor do toque, mesmo depois que os jornalistas começaram a dispersar. Mas, assim que a porta de vidro se fechou atrás deles, o ar mudou. O silêncio veio primeiro. Depois, o frio. Rafael soltou a mão dela o toque desapareceu como se nunca tivesse existido. O corredor principal do Grupo Montenegro era largo, revestido de vidro e aço. O som dos passos ecoava com perfeição matemática, como se até o chão tivesse sido projetado para intimidar. O assistente de Rafael se aproximou, entregando-lhe um tablet. — Senhor, as ações subiram três pontos desde o início da coletiva. Disse, apressado. Rafael assentiu, o olhar já fixo na tela. — Confirme a reunião com o conselho às quatorze. E avise Clara para acompanhar a senhora Montenegro. Clara surgiu logo atrás deles, impecável, como se tivesse sido invocada pelo próprio comando. — Sim, senhor. Valentina vinha alguns passos atrás, ainda ofuscada pelos flashes que pareciam arder em sua memória. O corpo dela seguia a rotina da performance: andar, respirar, manter o queixo erguido. Mas a alma ainda estava presa no barulho das perguntas e na sensação de ser observada como um produto novo em prateleira. O elevador abriu. Os três entraram. O silêncio ali dentro era absoluto, pesado o tipo de silêncio que fala mais do que qualquer palavra. Rafael observava o próprio reflexo na parede espelhada; Valentina observava o dela. Dois estranhos unidos por contrato. E Clara, imóvel, era o lembrete vivo de que nada daquilo era escolha. Quando as portas se abriram, eles estavam no andar executivo. Rafael caminhou à frente, passos firmes e direção clara. A cada metro, o ambiente parecia mudar de temperatura: do neutro ao gélido. Ao chegarem ao escritório, o assistente tentou entrar, mas Rafael ergueu a mão. — Deixem-nos. Clara hesitou, olhou para Valentina e depois para ele, e finalmente se retirou, fechando a porta atrás de si. O silêncio que ficou era diferente. Mais denso. Quase físico. Rafael parou diante da parede de vidro que mostrava a cidade São Paulo brilhava lá fora, indiferente a tudo. — A coletiva foi eficiente. Disse, ainda de costas. — As ações subiram três pontos desde as sete da manhã. Valentina manteve a postura. — Fico feliz em ter ajudado. Ele se virou lentamente, o olhar cravado nela. — Fez o que devia. Mas o que se vê ainda não é o suficiente. A voz dele era calma, mas havia nela uma tensão quase imperceptível. O tipo de calma que precede o comando. Rafael caminhou até a mesa e apoiou as mãos sobre o tampo de vidro. — Clara vai te levar à Maison Moretti. Disse, direto. — Quero que a transformem. Valentina franziu o cenho. — Transformar? — Roupa, cabelo, acessórios, tudo. Respondeu ele, como quem dita uma ordem de guerra. — Não poupe despesas. Quero a senhora Montenegro como a mulher mais bem-vestida do país. Houve um instante de surpresa nos olhos dela depois, apenas o cansaço. — Isso não é necessário. Rafael ergueu o olhar, impassível. — É. Você carrega meu nome agora. E o nome Montenegro não admite aparência de fragilidade. A frase ficou pairando no ar, cruel e bonita de um jeito estranho. Valentina respirou fundo, tentando conter o que fervia por dentro. Ele se virou para a janela. — Clara vai providenciar a visita ao salão. Quero o relatório completo até o fim da tarde. O tom seco, corporativo. Um homem falando de fusões, não de pessoas. — E se eu não quiser ser “transformada”? Perguntou ela, por fim. Ele voltou-se para ela com aquele olhar de aço o mesmo que ela já aprendera a temer. — Vai ser. Querendo ou não. O coração dela disparou, mas o rosto permaneceu imóvel. Ela o encarou por um instante, longa o bastante para que ele percebesse que não havia submissão, só exaustão. — Entendido. Respondeu, e virou-se para sair. Rafael a observou caminhar até a porta. O som dos saltos dela ecoou, seco, preciso. Antes que a maçaneta girasse, ele falou mais para o próprio vazio do que para ela: — É impressionante o quanto uma mulher pode mudar em tão pouco tempo. Ela não respondeu. Mas, por um segundo, ele viu a sombra de uma expressão um sorriso quase imperceptível, cortado pela dor. Quando a porta se fechou, Rafael ficou sozinho. O vidro refletia a própria imagem um homem de terno caro e olhos vazios. E por trás desse reflexo, ele viu a lembrança. Era o corredor de universidade, um riso leve no ar, livros nos braços e o vento bagunçando o cabelo dela. Valentina, de jeans e casaco claro, cercada de colegas, rindo como quem ainda acreditava no futuro. O som daquela risada ficou preso na mente dele. Tão viva e distante quanto a própria juventude. Agora, à sua frente, havia apenas silêncio. O telefone vibrou sobre a mesa, trazendo-o de volta à realidade. Ele respirou fundo, ajustou o paletó e apertou o botão para atender. A máscara voltava ao rosto. O império continuava. No corredor, Clara esperava de braços cruzados, o tablet nas mãos. — O carro está pronto, senhora Montenegro. Disse, com frieza. — O senhor pediu que eu cuidasse de tudo. Valentina assentiu, o olhar distante. — Claro. Caminharam lado a lado pelo corredor reluzente. O som dos saltos de Clara e dos dela se confundia, dois ritmos idênticos, duas mulheres tentando parecer perfeitas. Mas só uma delas sabia o peso de estar sendo apagada. O elevador desceu devagar. Valentina observava o reflexo o coque, o vestido bege, o batom pálido. E se perguntou quanto tempo levaria até não se reconhecer mais. O carro estacionou diante de uma fachada de vidro e ouro. O nome da loja brilhava em letras cursivas no alto: Maison Moretti o templo da moda que alimentava o ego da elite. Clara desceu primeiro, o salto soando alto demais no piso de mármore. Valentina a seguiu, o corpo tenso, o olhar atravessando as vitrines cheias de manequins etéreos vestindo o tipo de perfeição que se compra. — Vamos, senhora Montenegro. Disse Clara, o tom frio. — O senhor pediu que eu cuidasse de tudo. As atendentes se apressaram ao vê-las. Um desfile de sorrisos treinados, mãos elegantes, perfumes caros. Uma delas, loura, magra e de olhos exageradamente azuis, inclinou-se em reverência: — É uma honra recebê-la, senhora Montenegro. Valentina não respondeu. Apenas assentiu, sentindo o nó na garganta apertar ao ouvir aquele sobrenome. Clara tomou a dianteira. — Vamos precisar de vestidos, conjuntos formais, bolsas, sapatos, tudo. Disse, olhando Valentina de cima a baixo. — O senhor Montenegro não gosta de cores gritantes. Escolham tons neutros, clássicos. Nada que chame atenção. A atendente sorriu, cúmplice. — Entendido. Valentina deixou-se conduzir até o provador. As luzes eram intensas, o espelho multiplicava cada detalhe. Enquanto experimentava o primeiro vestido um tom cinza-perolado que a fazia parecer parte da parede ouviu a voz de Clara atrás dela: — O senhor Montenegro aprecia discrição. Mulheres casadas devem ser elegantes, não provocantes. Valentina virou-se devagar. — Elegância e ausência são a mesma coisa pra você? Clara arqueou uma sobrancelha. — Elegância é saber o próprio lugar. E o seu, senhora Montenegro, não é o palco é a plateia. O silêncio cortou o ar. Valentina respirou fundo, controlando a resposta que ameaçava escapar. A mulher no espelho parecia outra: mais pálida, mais contida. — Esse vestido está bom. Disse, apenas. Clara analisou com olhos clínicos. — Não. Esse apaga seu tom de pele. Vai parecer cansada nas fotos. Olhou para a atendente. — Traga o bege rosado, o que lembra o usado por Isabella Moretti na semana de moda de Paris. Valentina sentiu o estômago contrair. Isabella. O nome pairou como veneno doce. Clara sorriu de leve, notando o desconforto. — A senhorita Moretti tem um senso de estilo inigualável. Refinada, elegante, um verdadeiro símbolo da família. fez uma pausa teatral. — Uma pena que não pôde vir este ano. Valentina apenas segurou o tecido nas mãos, firme, tentando não demonstrar nada. A assistente se aproximou, o olhar satisfeito com a própria crueldade. — Viu como ela se porta? Continuou, girando uma revista de moda aberta numa página onde Isabella Moretti posava ao lado de um logotipo Montenegro. — É isso que se espera de uma esposa: classe, sobriedade e… silêncio. Valentina ergueu os olhos para o reflexo e, por um segundo, quis rir ou gritar. Mas não fez nenhum dos dois. Depois vieram os sapatos, os acessórios, as bolsas. A cada escolha, Clara fazia um comentário que soava como golpe: — Muito juvenil. — Vermelho é vulgar. — O senhor Montenegro detesta brilhos. — Esmalte escuro? Não. Nude ou nada. Ele é obcecado por limpeza. Cada frase arrancava dela um pedaço invisível. Por fim, Clara entregou uma caixa com um conjunto simples, bege e pérolas. — Isso. Disse, satisfeita. — Finalmente parece uma Montenegro. Valentina olhou-se no espelho. O reflexo era perfeito, sim. Mas vazio. A mulher que retribuía o olhar não tinha cor, nem voz, nem rastro do que um dia fora. — Terminamos? Perguntou, a voz baixa. — Por hoje, sim. Respondeu Clara, digitando algo no celular. — Amanhã temos o salão. O cabelo precisa ser ajustado — essas mechas são… pouco profissionais. Valentina assentiu, sem expressão. No fundo, sabia que o que Clara realmente queria ajustar não era o cabelo — era a identidade. Enquanto saíam da loja, algo no canto da vitrine chamou sua atenção: um pôster enorme de Isabella Moretti. Vestido branco, olhar altivo, um leve sorriso. Atrás dela, o logotipo Montenegro em letras douradas. Valentina parou. Por um instante, encarou aquela imagem como quem encara o próprio túmulo. Clara se aproximou, o tom carregado de falsa inocência: — Linda, não acha? — sussurrou. — Ela sempre soube o que é ser uma verdadeira Montenegro. Valentina não respondeu. Apenas continuou olhando o pôster até o motorista abrir a porta. Quando entrou no carro, o espelho do teto refletiu seu rosto impecável, vazio, apagado. Ela inspirou fundo, o peito pesado, e pensou: "Faltam onze meses." Virou o rosto para a janela. Lá fora, São Paulo seguia em movimento viva, barulhenta, cheia de cor. Exatamente tudo o que ela já não era.






