Mundo ficciónIniciar sesiónA manhã começou fria, como se o próprio sol tivesse medo de atravessar as janelas daquela casa.
Valentina acordou com o som de batidas suaves na porta três, precisas, impessoais. — São seis e trinta, senhora Montenegro. A voz de Clara era cortante, como sempre. — O senhor pediu que eu a lembrasse do café. Valentina piscou algumas vezes antes de responder. Dormira mal, quase nada. A cabeça latejava, o corpo ainda pesado da noite anterior. — Já estou me levantando. Clara entrou sem esperar convite. Carregava um cabide com um conjunto de roupas em tons neutros, tão elegantes quanto frios. — Escolha do senhor Montenegro. Disse sem emoção. Disse que o vermelho não combina com a imagem que deseja projetar. Valentina olhou o vestido, um bege que beirava o apagado. — Claro. murmurou, e começou a se trocar. Enquanto ela se arrumava, Clara circulava pelo quarto, ajustando pequenos detalhes: endireitou o vaso de lírios, alinhou o lençol, recolheu o copo d’água. Era como se cada gesto seu dissesse, sem palavras: aqui, nada te pertence. Valentina terminou de se vestir e encarou o espelho. O reflexo mostrava uma mulher que parecia parte da mobília impecável, mas sem cor. Clara se aproximou, observou o resultado e assentiu brevemente. — Melhor. O senhor aprecia discrição. A frase soou como uma sentença. Desceram em silêncio. O som dos saltos no chão de mármore ecoava como um lembrete de que cada passo ali era vigiado. Na sala de jantar, Rafael já estava sentado à cabeceira. Jornal aberto, xícara de café à direita, o celular vibrando sem parar. Ele não levantou o olhar quando as duas entraram. — Bom dia. Disse ela, a voz contida. — Está atrasada. Respondeu, sem erguer os olhos. — O café era às sete. Valentina olhou o relógio: eram sete e cinco. O estômago se contraiu. Ela se sentou devagar. As mãos tremiam levemente ao pegar a xícara. Rafael fechou o jornal e, por fim, a olhou. O olhar dele era o mesmo da noite anterior calculado, frio, avaliador. — Clara te explicou a agenda de hoje? — Sim. A coletiva, às dez. Respondeu. — Às nove e quarenta. Corrigiu, seco. — Nunca depois da hora. Clara colocou discretamente um pequeno estojo sobre a mesa. — Maquiagem neutra, batom claro, nada chamativo. Rafael assentiu, sem olhar para ela. — Ótimo. Murmurou. — A senhora Montenegro deve parecer confiável. Não excessiva. Ela baixou o olhar para o prato: frutas cortadas milimetricamente, um pão sem manteiga, suco de laranja. Tocou o garfo, mas o apetite não vinha. Rafael tomou um gole de café e observou. — Coma. A imprensa é implacável com rostos abatidos. Ela obedeceu. Um pedaço pequeno, engolido com dificuldade. Por um instante, o silêncio pareceu engolir tudo. Nem Clara ousava se mover. Rafael voltou a falar, sem alterar o tom: — Hoje, Clara vai te acompanhar para comprar roupas adequadas. O contrato exige uma imagem pública alinhada. Você representa o sobrenome Montenegro agora. Valentina ergueu o olhar. — Entendo. — Espero que sim. Ele rebateu, sem hesitar. — Você quis este acordo. Agora vai aprender o custo de tê-lo. O garfo tremeu entre os dedos dela. Rafael se levantou. O jornal foi dobrado, o café deixado pela metade. — Nos vemos na empresa às oito e meia. Disse, colocando o relógio no pulso. Clara o seguiu até a porta. Valentina ficou sozinha à mesa, com o som distante do motor do carro sendo ligado lá fora. Por alguns segundos, o mundo parou. Ela olhou a própria mão sobre o prato tão imóvel quanto o resto dela. Depois respirou fundo, devagar, e murmurou para si mesma, quase sem som: — Um dia de cada vez. Só isso. Mas até o ar parecia pesar. Naquele lugar, até respirar era um ato que precisava ser aprendido. Mais tarde, o vidro escuro da limusine refletia o rosto que Valentina aprendera a usar. Um sorriso contido, olhar sereno, a postura exata de quem nasceu para ser observada. Por dentro, o coração batia como um tambor mas ninguém precisava saber. Valentina chegou à empresa cerca de quinze minutos antes do início da coletiva. O hall era de vidro e aço, frio como o dono. As pessoas paravam quando ela passava — não por respeito, mas por curiosidade. No fim do corredor, Rafael surgiu. Nenhuma palavra, só o som dos passos se encontrando no mármore. — Lembre-se do que eu disse. Falou, sem desviar o olhar da janela. — Ninguém precisa acreditar no nosso amor. Só na imagem dele. Valentina manteve os olhos fixos adiante. — Pode deixar. Respondeu com calma. — Eu aprendi a representar muito antes de te conhecer. Ele a fitou por um instante, surpreso com a firmeza, mas nada respondeu. A sede do Grupo Montenegro, uma multidão os aguardava. Câmeras, microfones, flashes o espetáculo do poder. Ele estendeu a mão, e ela por um instante, hesitou. Depois, segurou-a. O toque era firme, quase ensaiado. Ela o acompanhou com o mesmo controle que usava nos tribunais. O vestido bege fluía bem, discreto e elegante. O cabelo preso em coque baixo. Nenhuma joia excessiva. Apenas o suficiente. Os flashes explodiram, cegando momentaneamente. Rafael se inclinou levemente, a boca próxima ao ouvido dela. — Agora sorria. E ela sorriu. Um sorriso elegante, equilibrado, o tipo que parece real e por isso engana. As vozes começaram a se misturar: — Senhor Montenegro, como foi a fusão com o grupo japonês? — Doutora Valentina, como se conheceram? — Foi amor à primeira vista? — O casamento foi secreto? Rafael respondeu primeiro, com a precisão calculada de sempre: — A fusão foi um sucesso. Quanto ao casamento... algumas coisas na vida acontecem sem planejamento, mas com propósito. Valentina virou-se para os jornalistas. O tom dela saiu doce, natural, estudado. — Eu não esperava. Mas às vezes o destino tem um senso de humor próprio. Os risos foram imediatos, suaves. Os flashes dobraram. — Então é um casamento de amor? Perguntou uma repórter mais atrevida. Rafael passou o braço pela cintura dela, num gesto rápido, confiante. O toque pareceu natural quase íntimo. — É um casamento de verdade. Respondeu ele. Valentina manteve o sorriso e o olhar fixo nele, como se concordasse com o que sentia, e não apenas com o que dizia. O público comprou a farsa. Uma jornalista de cabelos curtos insistiu: — E a lua de mel, vai acontecer logo? Ela deu uma risadinha baixa. — O trabalho não espera. Mas quem disse que o amor precisa de calendário? Os flashes explodiram outra vez. A coletiva continuou por quase uma hora. Valentina respondeu perguntas com diplomacia, elegância e um charme que nem ela sabia ainda possuir. Vittoria, assistindo pela transmissão ao vivo no salão da mansão, manteve o rosto rígido mas o olhar denunciava desconforto. A nora, que esperava ver humilhada, parecia uma mulher de aço e seda. Quando a entrevista terminou, Rafael a conduziu de volta ao carro. Os dois se sentaram em silêncio por alguns segundos. A cidade passava em borrões de luz pela janela. Ele foi o primeiro a quebrar o silêncio: — Você foi... convincente. Valentina manteve o olhar na rua. — É o que esperava, não é? Que eu fizesse o papel direito. — Sim. Respondeu, olhando-a agora. — Mas não esperava que fizesse tão bem. Ela virou o rosto para ele, o sorriso breve, controlado. — Então estamos quites. Você comprou uma imagem. Eu entreguei o produto. Por um momento, ele apenas a observou. Não havia sarcasmo no olhar dele, apenas algo que parecia confuso e perigoso. Mas antes que dissesse algo, o celular de Rafael vibrou. Ele atendeu, o rosto voltando ao modo impenetrável. Valentina desviou o olhar. Lá fora, o trânsito seguia caótico, e o céu, cinza.






