Mundo ficciónIniciar sesiónO relógio marcava 19h59 quando Valentina desceu as escadas.
O som dos próprios passos ecoava pelo corredor, misturando-se ao murmúrio distante de vozes e talheres. O cheiro de vinho e carne assada dominava o ar. Naquela casa, até o jantar parecia uma encenação. O salão principal estava iluminado demais, como se a claridade fosse feita para expor imperfeições. Uma longa mesa de mogno ocupava o centro, coberta por velas, taças de cristal e guardanapos dobrados com precisão militar. Ao redor, a família Montenegro elegante, fria, mortal. Vittoria foi a primeira a notá-la. — Finalmente. Disse, erguendo o queixo. — Pensei que fosse se atrasar, mas talvez tenha aprendido alguma coisa nessa vida. Valentina forçou um leve sorriso, medido. — Boa noite. Respondeu, tentando manter o tom neutro. A mulher bateu levemente no ombro de um homem grisalho sentado à cabeceira. — Este é o patriarca da família, Augusto Montenegro. Apresentou. — Meu marido. O homem mal levantou os olhos do prato. O rosto cansado e o olhar vago deixavam claro que estava ali por costume, não por interesse. — Boa noite. Murmurou, e voltou a olhar o jornal com as notícias de manhã. — Sempre tão caloroso, irmão. Ironizou uma voz feminina ao fundo. Valentina virou-se e viu uma mulher alta, de cabelos loiros impecáveis e vestido verde esmeralda. — Sou Helena, tia de Rafael. Sorriu, exibindo dentes brancos demais. — E preciso dizer, querida... você tem coragem. Casar-se com Rafael sem exigir um pré-nupcial? Admirável... ou suicida. O riso abafado percorreu a mesa. Valentina respirou fundo, engolindo a resposta que queimava na língua. — E este é Enzo, primo de Rafael, filho de Helena. Anunciou Vittoria, desviando o foco para o homem sentado ao lado de Helena. Enzo Montenegro era o retrato da arrogância jovial: blazer escuro, camisa aberta no colarinho, o olhar de quem se acha irresistível. Ele ergueu a taça em direção a Valentina, os olhos percorrendo seu corpo como se a despisse com o pensamento. — Prazer, prima. Disse com um sorriso oblíquo. — Ou devo dizer... cunhada? O tom carregava algo entre deboche e desejo. — Rafael sempre teve bom gosto. Completou, deixando o olhar deslizar descaradamente até o decote do vestido dela. Vittoria fingiu não perceber, mas um canto de sua boca denunciou satisfação. A humilhação era um esporte de família. Valentina sustentou o olhar de Enzo por um segundo, tempo suficiente para mostrar que o via, mas não se curvava. — Prazer em conhecê-los. Enzo não parou de olhar. — Se por acaso meu primo se cansar de você, me procura. Helena soltou uma risadinha. — Enzo, querido, contenha-se. A moça ainda está se adaptando à... Família Montenegro e se Rafael ouve você falando, sabe das consequências. — Deixe o rapaz, Helena. — disse Vittoria, girando a taça de vinho com elegância. — É importante que a nova integrante entenda o ambiente em que entrou. Aqui ninguém sobrevive sendo frágil. Valentina mordeu a língua. Por dentro, uma raiva silenciosa se movia, mas o rosto permanecia sereno. Aprendera nos tribunais que o poder, às vezes, está em saber calar. A conversa seguiu com risadas ocasionais e comentários que pareciam inocentes, mas tinham o peso de lâminas. Helena falava sobre viagens à Europa, Enzo se gabava de contratos falsamente importantes, e Augusto, o patriarca, lia em silêncio, como se não se interessasse por nada mencionado ali. Em meio ao ruído, Valentina percebeu: ninguém ali comia ainda e a mesa não havia sido servida com a comida. — E Rafael? Perguntou, enfim, quebrando o silêncio que pairava entre as provocações. Vittoria ergueu o olhar lentamente. — Rafael chega quando deve. Sorriu, mas o olhar cortava. — E todos esperam por ele. Mesmo que a comida esfrie. Enzo inclinou-se para ela, o perfume amadeirado se infiltrando no ar. — Até você, imagino. Sussurrou, próximo demais. Valentina recuou sutilmente, o suficiente para manter a distância e a dignidade. Por um instante, o salão pareceu prender a respiração. Então, o som dos passos ecoou pela entrada. Ritmados, seguros, dominantes. Rafael havia chegado. A conversa cessou como se uma lei silenciosa tivesse sido proclamada. Vittoria ajeitou o cabelo. Helena cruzou as pernas. Enzo endireitou-se. E Valentina… endireitou o corpo, sem saber se o que sentia era alívio ou medo. Ele entrou com a calma habitual, o terno escuro moldando o corpo como uma armadura. —Desculpem o atraso, a fusão com os japoneses demorou mais do que eu pretendia. Disse, tomando o lugar à cabeceira. Vittoria sorriu. — Tudo bem querido. Estava apenas apresentando sua tia e seu primo à sua.... Esposa. Disse com gosto amargo. Rafael pousou o olhar sobre a mãe. — Que bom. Espero que tenha sido bem recebida. Ele olhou para Valentina que estava calada, cabeça baixa. Fazendo Valentina levantar a cabeça e olhar para ele. — Como uma verdadeira Montenegro. Depois da chegada de Rafael, o jantar perdeu o som das vozes e ganhou o peso do silêncio. As empregadas começaram a circular pela mesa, enchendo taças, trocando pratos, servindo carne, vinho e pães quentes. O tilintar da porcelana era o único ruído que ousava existir. Rafael comia em silêncio, o olhar fixo na comida, mas, de tempos em tempos, desviava para Valentina. Havia algo naquele olhar que a deixava tensa. Não era desejo, nem raiva era controle. O tipo de olhar de quem mede, analisa e calcula quanto tempo um coração aguenta antes de quebrar. Ela mal tocou no prato. Cortou um pedaço da carne, mastigou sem sentir gosto. Cada garfada parecia parte de uma performance que não dominava. Vittoria observava de longe, com um sorriso que não chegava aos olhos. Helena sussurrava algo ao ouvido do filho, e Enzo a encarava como um caçador entediado observando a presa. O jantar seguia assim, como uma peça sem aplausos. Rafael falava pouco, mas quando o fazia, o salão inteiro se calava. Até Augusto largou o jornal e fingiu atenção quando ele comentou sobre a fusão com um grupo japonês. Valentina, calada, limitava-se a ouvir. O garfo pousado no prato, o vinho intacto, o corpo rígido demais para alguém que tentava parecer à vontade. Ela sentia o olhar de Rafael sobre ela pesado, constante, como se a estudasse. Quando as sobremesas chegaram, ela já não suportava o som dos talheres. Ergueu o olhar e encontrou o dele. Por um segundo, não havia mais ninguém ali. Só aquele silêncio entre os dois, cheio de tudo o que não podia ser dito. — Com licença. Disse, por fim, num fio de voz. — O dia foi agitado e me sinto exausta. Vittoria arqueou uma sobrancelha, o tom gelado. — Claro, querida.Bebeu um gole de vinho. — Afinal, a aparência de uma Montenegro deve ser impecável amanhã. Valentina assentiu, levantou-se e deixou a sala. Ninguém tentou impedi-la. Nem Rafael. Mas ela sentiu, ao subir as escadas, o olhar dele a acompanhando firme, frio, implacável. O quarto estava do mesmo jeito em que deixara. A mesma cama perfeitamente alinhada, as flores brancas ainda intactas, o ar pesado de perfume e vigilância. Ela tirou os brincos, o colar, o salto. O som do zíper do vestido quebrou o silêncio. Vestiu a camisola simples que trouxera de casa, e por um instante, diante do espelho, viu uma mulher que não reconhecia. Passou a mão pelo próprio rosto, tentando apagar o cansaço. Mas o que mais doía era o vazio. Tudo o que restava era a lembrança de quem fora e a sensação amarga de estar sendo moldada para caber em um lugar onde nunca quis estar. O relógio marcava quase dez quando bateram à porta. Três toques firmes, precisos. Ela hesitou, o coração acelerado. — Entre. A porta se abriu devagar. Rafael estava ali, sem o paletó, as mangas da camisa arregaçadas, o cabelo levemente desalinhado. Não havia suavidade naquele homem. Só domínio. Ele a olhou por um momento mais longo do que deveria. A camisola não era provocante, mas nele, até o olhar era uma sentença. Por um instante, o ar pareceu travar. E foi ali, no meio daquele silêncio, que uma lembrança o atravessou como um tiro. Um auditório em Boston, no meio do ano passado. Uma garota de toga, a voz firme, o olhar em chamas. Tinha deixado magistrados em silêncio, ganhado um caso improvável e levado um prêmio por isso. Agora, diante dele, estava a mesma mulher — sem a chama, sem o brilho, com os olhos vazios. E, de repente, ele soube: fora ele quem apagara aquela luz. Rafael desviou o olhar, voltando ao tom controlado. — Amanhã a coletiva de imprensa será na sede da empresa Montenegro. — disse, a voz baixa, firme. — Às sete. Te espero na mesa de café da manhã. Não se atrase. Ela apenas assentiu. Ele deu um passo para trás, mas ainda não havia terminado. — E mais uma coisa. — falou, frio. — Não tente bater de frente com a minha mãe. Valentina ergueu o olhar, desafiadora. — E se ela tentar comigo? Rafael sustentou o olhar dela, sem piscar. — Ela não perde. E quem perde pra ela... raramente volta a se levantar. O silêncio voltou a pesar. Ele respirou fundo, como quem se obriga a manter o controle. Depois, completou, o tom voltando ao gelo habitual: — Vista algo decente. Amanhã, Clara vai te levar para comprar roupas adequadas à sua nova posição. — o olhar dele desceu por ela, contido, sem disfarçar o juízo. — E lembre-se: sorria mais, senhora Montenegro. O enterro dos seus pais já passou. Agora é vida nova. As palavras caíram como pedras. Ele se virou e saiu, deixando o perfume e o veneno no ar. Valentina ficou parada, o coração descompassado. Raiva e dor misturadas em silêncio. Encostou-se à parede e murmurou: — Vida nova... Que Deus me ajude a sobreviver à antiga.






