Damian
Dei a Amara a única gentileza que um homem como eu costuma desprezar: deixei que dormisse na casa dos pais. Dominar não é sempre arrastar. Às vezes é abrir a porta e esperar do outro lado. Não dormi. Fiquei no escritório, vendo a chuva no vidro e ouvindo, pela memória, o “aceito” dela. O lobo pediu marca. O homem, paciência. De manhã, o motorista parou diante dos Vasquez. Amara trouxe uma mala média e uma sacola. A mãe abraçou o ar, o pai ergueu a mão num adeus contido. Abri a porta do carro. Ela passou por mim ereta, sem agradecimento. — Dormiu bem? — perguntei. — O suficiente. Pensei “mentirosa” e disse apenas: — Hoje você conhece a sua nova casa. — “Casa” é palavra cara. Não gaste comigo. A cidade subiu como um tabuleiro. O meu arranha-céu cortava nuvens, paredes de vidro, linhas limpas. No elevador privativo, o silêncio doía. As portas abriram para a vista inteira da cidade. — Bem-vinda à cobertura Blackwell, — anunciei. Ela caminhou devagar. O piso negro refletia as janelas, o horizonte parecia uma promessa sem dono. Parou junto ao painel de vidro. — É alto demais. — A altura lembra que cair custa caro. — E lembra que alguns empurram. — Eu puxo. Ou seguro. Não respondeu. Vasculhou com os olhos, lareira linear, cozinha de aço, corredor escuro. Fiquei dois passos atrás. O lobo farejou. Eu o calei. — As regras, — disse. — Segurança vinte e quatro horas. Portas com senha. Elevadores privados. Acesso total às áreas comuns e ao seu quarto. — “Seu quarto”, — repetiu. — Onde você dorme? — No seu. — Ótimo. — Há câmeras na sala e nos corredores, — continuei. — Não nos banheiros. Nem no seu quarto. A segurança monitora as áreas de risco. Eu também. — Claro que você monitora. O controle é sua religião. — A proteção é. Controle é o dízimo. Ela abriu gavetas na cozinha como quem testa cercas. Pediu café. Fiz eu mesmo para observá-la. A fumaça ergueu memória e fome. Quando entreguei a xícara, nossos dedos se tocaram um segundo a mais. O âmbar ameaçou meus olhos. Dominei. — Por que eu? — ela perguntou. — Com tantas opções. A verdade ficou entre os dentes… porque o lobo reconheceu você. Ofereci a versão humana. — Porque você não se curva. E sabe quando sangrar e quando cicatrizar. — Isso soa como avaliação clínica. — É contrato. Bebeu em silêncio. O vermelho da outra noite ainda assombrava a pele. Abri o terraço. — Venha ver. A grade de vidro dava a ilusão de borda livre. O vento trouxe cheiro de cidade lavada. Amara encostou as mãos no parapeito. — De cima tudo parece pequeno. — Exceto o que importa. — O que importa para você, Damian? — Vontade. — A sua. Nunca a dos outros. — A minha. E, às vezes, a sua. Ela virou o rosto, surpresa e irritada. — Você acha que a minha vontade sobrevive aqui? — Acho que me desafia. E eu gosto de desafios. Uma mecha grudou no lábio dela. Soltei com dois dedos. Eu poderia segurá-la pela nuca. Não fiz. A fera rosnou. Ainda não, respondi por dentro. — Mostre o quarto, — pediu. Conduzi pelo corredor. Portas pretas, luz baixa. Abri a última à direita. — Este é o seu. Banheiro, closet, vista para o leste. A privacidade é sua. Troque o que quiser. Ela circulou o espaço, testou a cama com a palma e voltou o queixo para mim. — O que você espera da “primeira noite”? — Que você durma. E que acorde aqui. — Só isso? — Hoje, sim. A distância entre nós vibrou. Aproximei devagar e toquei de leve o rosto dela. O lobo pediu dente e pele. Segurei. — Você é minha esposa, — murmurei. — Logo entenderá que nós não é apenas uma palvra. Os olhos dela não pediram ajuda. Arderam desafio. Desci os dedos até a linha do maxilar e parei. — Não sou objeto. — Não. É território. E eu protejo o que é meu. — Território também decide quem entra. — Às vezes, dois donos decidem juntos. Ela deu um passo para trás até a cama encostar nas pernas. Eu recuei um passo igual. — Precisa de algo? — perguntei. — Privacidade. — Concedida. Saí e fechei a porta. Sentei no sofá da sala e liguei as telas da segurança: hall, cozinha, corredor, sala. Imagem limpa, preto e branco. Nada no quarto dela. Mantive esse limite. O resto ficou invisível para mim. Frustração e alívio vieram juntos. Eu não a via, mas sabia que estava ali. O silêncio das câmeras me obrigava a imaginar cada gesto, a água correndo, a toalha deslizando, o cabelo úmido colando na pele. O lobo abaixou o corpo como fera antes do salto, o homem respirou pelo número oito. Peguei o telefone. — Victor. Desligue as permissões externas do elevador. Só eu e ela. — “Sim, senhor.” — Envie flores brancas aos pais. Sem cartão. — “Feito.” Devolvi o celular à mesa. Amara pegou água, sentou no braço da poltrona, desenhou círculos no mármore com o pé. Minha mão fechou sozinha. Eu podia ir até ela. Eu podia. Não fui. Ela bocejou, largou o copo, apagou a luz da sala e sumiu no corredor. A câmera mostrou apenas a sombra entrando no quarto. Fiquei olhando o retângulo escuro, ouvindo meu pulso. A fera acalmou devagar. A cidade piscou. Lavei o rosto. A noite derramava linhas finas sobre as avenidas. — “Você é minha esposa” — eu havia dito. Verdade. Mas a outra verdade latejou sob a pele com violência mansa… você é minha Luna. Meu corpo sabe. Minhas raízes antigas sabem. Você vai saber. Entrei no meu quarto e deixei as luzes morrerem. Deitei. Não era rendição, era método. Amanhã o mundo exigiria números, reuniões, jornais. Hoje, bastava ouvir, através das paredes, o ritmo novo que dividiríamos. Não havia noite de núpcias, casal apaixonado trocando beijos. Havia vigília. E eu vigiei. Em silêncio. Como fazem os que guardam o que é seu.