Amara
O carro parou diante de um prédio antigo que fingia ser invisível. Sem flores, sem tapete, sem música. Apenas portas de ferro pintadas de um bege cansado, uma recepcionista bocejando e o cheiro agridoce de papel gasto. Eu desci com as pernas firmes por fora e moles por dentro. O anel brilhou no meu dedo com a insistência de um farol em dia de naufrágio. — É aqui? — perguntei, mesmo sabendo a resposta. — É, — Damian disse, simples. O tom dele sempre parece a versão lógica de um terremoto: pouco ruído, tudo mexido. Victor abriu caminho com a eficiência de quem já comprou vários silêncios. Havia uma funcionária de coque rigoroso atrás do balcão. Ela ergueu os olhos, reconheceu o sobrenome, e a postura mudou como se uma mão invisível tivesse apertado seus ombros para trás. — Bom dia, senhor Blackwell. Sala dois. O juiz está à espera. — “Senhor Blackwell.” — Eu pensei em como, depois de cinco minutos, me chamariam “senhora”. A palavra pesou na língua como pedra. A sala dois tinha paredes amareladas, uma planta triste ao canto e uma mesa com marcas de caneca. O juiz, um homem cordial com olheiras de quem já casou mais desconhecidos que amigos, levantou-se. — Vamos ser objetivos, — disse ele, folheando os papéis. — Houve dispensa de proclamas, está tudo regular. Precisarei de assinaturas, e de uma resposta clara quando eu perguntar. Clara. A palavra soou como ponte sem corrimão. Damian ficou ao meu lado, uma presença sólida que ocupava espaço demais no ar. Nem colônia, nem suor, nele havia um cheiro limpo com alguma coisa que me atravessava como instinto. Abri os dedos sobre a mesa. Eles tremiam. Fiquei furiosa por isso. — Documento, por favor, — pediu a escrevente. Entreguei. Ela digitou, o teclado criando um ritmo estranho, quase um mantra burocrático. O juiz pigarreou. — Prontos? Olhei para os papéis. A fonte pequena, o texto cinza, meu nome inteiro, Amara Vasquez, repetido ali como se me lembrasse de que eu ainda existia antes dele. O juiz começou as formalidades, eu mal escutei as primeiras frases. Tudo que senti foi o olhar de Damian, fixo. Não suave, não cruel. Avaliador. Como se quisesse gravar em mim cada vibração. — Amara Vasquez, você aceita… — a voz do juiz entrou por um ouvido e desceu para o estômago. — …assumindo deveres e direitos previstos em lei? Minha boca secou. Por um segundo, pensei no vestido vermelho, no bilhete curto, na mão dele segurando a minha com força no noivado. Pensei na minha mãe arrumando a barra das cortinas para não chorar, no meu pai fingindo que sabia respirar. Pensei em Lara me enviando um coração tímido no celular. Pensei em mim, diante do espelho, dizendo que não seria quebrada. — Aceito, — falei. Não foi um sussurro. Foi baixo, porém inteiro. O juiz assentiu e virou-se para Damian. — Damian Blackwell, você aceita…? — Aceito, — ele disse, antes que o ponto de interrogação terminasse de existir. A escrevente pediu que assinássemos. Peguei a caneta. Meu nome saiu bonito, treinado em anos de escolas que minha família mal podia pagar. Quando enfim terminei as curvas do “z”, a mão doeu. Damian pegou a caneta em seguida, e a assinatura dele foi rápida, angular, como uma ordem escrita. — Parabéns, — o juiz falou, com um sorriso profissional. — São marido e mulher. Uma frase. Séculos dentro de uma sala sem flores. Ele virou a folha, pegou as alianças de um estojo. A minha estava gelada. Damian segurou minha mão esquerda e, por um segundo, o mundo perdeu cor. Não pelo ouro polido, mas pelo olhar dele. Cinza que quase, quase piscou âmbar. O ar ao redor pareceu vibrar, um zumbido baixo que meu corpo entendeu antes da cabeça. Era como encostar a pele em um segredo. — Olhe para mim, — ele pediu, macio. Eu levantei o rosto. Não era súplica, era comando. E, mesmo assim, obedeci. Ele deslizou a aliança até o fim, o ouro colando na base do meu dedo como promessa e grilhão. O peito ardeu num lugar impossível. — Sou sua esposa por contrato, — murmurei, somente para ele. — Não sua coisa. — Eu guardo o que é meu, — respondeu, em um volume que só eu alcancei. — E você vai ter ideia do que significa ser minha. Ele repetiu a frase de antes, mas com convicção agora. As palavras deveriam me ferir. Em vez disso, deixaram minha pele sensível, elétrica. O juiz tossiu de leve, pedindo gentileza para uma foto protocolar. Sorrimos sem dentes. Quando saímos da sala, o corredor pareceu mais estreito do que na entrada. Victor foi adiante para resolver taxas. Eu parei junto à janela baixa do andar e encostei os dedos no vidro. Lá fora, a cidade corria sem saber do meu luto. Sim, luto. Não pelo meu sobrenome, mas pelo capítulo da garota que era só filha, só amiga, só alguém com a própria chave do corpo e da agenda. Agora tudo tinha um nós imposto. — Respire, — a voz de Damian veio pelas minhas costas. — Não desmaie agora. — Eu não desmaio, — respondi. — Eu lembro. — Do quê? — De promessas. As minhas, não as suas. Ele se aproximou mais. Senti a sombra dele colar na minha. O calor o denunciava. Quis me afastar pelo orgulho, não consegui pelo medo de implodir na hora errada. Havia um campo energético entre nós, inegável e irritante, como se a pele reconhecesse primeiro, e a mente, a contragosto, tomasse notas. — Perdeu o apetite por flores e fotos? — ele provocou, baixo. — Posso mandar fazer, se o show te conforta. — Não preciso de flores para enterrar parte de mim. — Não enterre, — disse, sério. — Eu quero todas as suas partes vivas. — Para controlar? — Para conquistar, — corrigiu. — São coisas diferentes. — E quando você decidir que já me “conquistou”, o que resta? Ele pousou dois dedos no batente de madeira ao meu lado. Não me tocou. O gesto, no entanto, me tocou inteira. — Restam mordidas, — respondeu. — Marcas. Proteções. Minha respiração falhou. O coração bateu forte, irritado comigo por obedecer a um idioma que eu não havia escolhido. Não era só desejo. Era outra coisa, muito mais funda, que meu corpo conhecia em algum lugar antigo. — Eu não acredito nessas lendas, — menti. — Pode continuar não acreditando, — ele disse, como quem promete uma tempestade. — A verdade não pede licença. Victor surgiu, eficiente como sempre. — Tudo certo, senhor. Carro na porta lateral. Sem fotógrafos. — Ótimo, — Damian respondeu. — Vamos. Eu caminhei ao lado dele como quem caminha entre grades invisíveis. No elevador, o silêncio foi ainda mais apertado. As portas se abriram no térreo, e o ar me atingiu com cheiro de chuva iminente. O motorista segurou a porta traseira. Antes de entrar, virei-me para Damian. — Preciso de cinco minutos sozinha, — falei. — Sem você. Sem Victor. Sem a sua sombra. Os olhos dele pousaram nos meus. O que vi não foi carinho. Foi cálculo. E algo que brilhava atrás do cálculo, perigoso. — Três, — ele disse. — Quatro. — Três, — repetiu, e deu um passo atrás, curioso para saber para onde eu iria, como um caçador que concede vantagem ao animal só para se divertir com a perseguição. Andei até o lado do prédio, onde uma árvore magra tentava existir. Encostei na parede fria e puxei o celular. Uma mensagem de Lara piscava: — “Você está bem?” Respondi sem pensar: — “Casei no cartório. Sem música. Sem flores. Acho que vendi minha alma por empregos. Não sei quem eu sou agora.” Ela digitou rápido: — “Você é você. Mesmo que o mundo tente te renomear. Onde você está?” Olhei por cima do ombro. Damian, à distância, não tirava os olhos de mim. Eu senti, com uma certeza que não saberia explicar, que se eu corresse agora, ele correria também. Não por necessidade pública. Por instinto. E o mundo seria pequeno demais para me esconder. — “Estou aqui,” — respondi, seca. — “E vou continuar. Por mim.” Guardei o celular. Voltei devagar, cabeça erguida. Quando parei diante dele, não pedi licença para entrar no carro. Entrei. Ele veio depois, e o couro do banco gemeu sob o peso de um destino que eu não escolhi, mas que eu jurava dobrar. No caminho, ninguém falou. A cidade escorria pelas janelas como um filme mudo. Só quando viramos a esquina do meu quarteirão ele quebrou o silêncio. — Hoje você ganhou uma aliança, — disse. — Em breve, ganhará uma certeza. — Hoje você ganhou uma esposa, — retruquei. — Em breve, vai descobrir o que significa não mandar em tudo que possui. Ele respirou. O âmbar lampejou de novo, rápido, quase uma alucinação. — Veremos, — murmurou. A chuva enfim desabou, lavando o vidro com pressa. Observei as gotas disputando corrida. Nenhuma venceu. Todas se juntaram antes da linha. Eu sorri sem humor. O motorista parou. A porta se abriu. — Obrigada, — falei, porque a educação me protege quando a coragem falha. — Amara, — ele me chamou, e o meu nome na voz dele foi uma coisa quente demais para o frio do dia. Virei o rosto. — Não fuja. Eu encontro. — Talvez eu queira ser encontrada, — arrisquei. — Mas não domada. Os músculos do maxilar dele vibraram, e por um segundo o ar pareceu ficar mais denso. — Não confunda proteção com coleira, — disse. — Eu sei a diferença. — Eu vou aprender na prática, então, — respondi, e saltei para a calçada como quem salta de uma borda estreita para outra ainda mais estreita. A porta se fechou. O carro partiu. Fiquei ali, na chuva, deixando a água colar meu vestido simples ao corpo. Sem flores, sem música, sem convidados. Casada. Não por amor, por sentença. Mas se há uma coisa que o destino ainda não aprendeu sobre mim é que eu alto-reviso todas as sentenças. E a minha, mesmo escrita por mãos alheias, ainda pode receber uma última linha… não vou me deixar quebrar.