Amara
O silêncio da casa parecia mais alto que os aplausos forçados de um jantar. Subi correndo as escadas, os saltos ecoando como batidas de martelo, e tranquei a porta do meu quarto. O coração ainda vibrava da presença dele, daquele olhar cinza-âmbar que parecia me despir sem tocar. Joguei a bolsa sobre a cama e respirei fundo. Era cedo demais para me sentir prisioneira, mas já estava sufocando. O anel em meu dedo brilhava sob a luz fraca do abajur, um lembrete de que minha vida não me pertencia mais. — Estúpida — sussurrei para mim mesma, tentando arrancar o anel. Mas o aro parecia grudado na pele, pesado como algema. As lágrimas vieram sem aviso. Não chorei pela riqueza perdida ou pelo peso da empresa, mas por mim. Por saber que não havia volta. Um toque suave na porta me fez endireitar. — Amara? — a voz da minha mãe atravessou o quarto, vacilante. — Ele pediu para entregar isso. Abri a porta e recebi uma caixa luxuosa, preta com detalhes dourados. As mãos dela tremiam mais que as minhas. — Está tudo bem, mãe. — Tentei sorrir, mas o sorriso que ofereci parecia de vidro prestes a trincar. Ela beijou minha testa e saiu sem mais palavras. Coloquei a caixa sobre a cama. O silêncio se tornou sentença enquanto abria a tampa. O tecido vermelho brilhou como fogo. Um vestido, longo e impecável, caindo como se tivesse sido desenhado para mim. No topo, um bilhete. Apenas três palavras: — “Use isso. – D.” Senti o sangue ferver. A imposição queimou mais que qualquer humilhação. — Ele acha que pode me vestir como boneca. — Amassando o papel, joguei-o no chão. Mas quando meus dedos tocaram o tecido, algo estranho aconteceu. Um arrepio percorreu minha pele, e não era só raiva. Era memória. O peso do olhar dele na varanda, a voz baixa sussurrando — “Você não faz ideia do que significa ser minha.” Meu corpo reagiu antes da minha mente. O vestido vermelho me queimava nas mãos, como se carregasse o calor dele. Fechei os olhos e imaginei Damian me vendo usá-lo. A respiração falhou. — Idiota. — Repreendi a mim mesma. — Não vou me dobrar. Caminhei pelo quarto, o vestido contra o peito. Cada passo era guerra entre raiva e algo mais obscuro, proibido. Lembrei do aperto da mão dele, firme como correntes. Do olhar que oscilava entre humano e predador. — “Por que sinto isso?” — pensei, apertando os olhos. Nunca antes meu corpo reagiu a um homem assim, como se minha pele tivesse memórias próprias. O frio subia pela espinha e terminava em calor sufocante. Tirei a roupa lentamente, como se o próprio ato fosse uma batalha. Cada botão, cada peça caída no chão era um passo entre revolta e rendição. Vesti o vermelho, e o tecido abraçou meu corpo com perfeição assustadora. O zíper deslizou até o fim. Ajustei os ombros. Era como se tivesse sido moldado para mim, como se Damian soubesse exatamente onde apertar e onde soltar. A fúria cresceu. Como ele sabia? Como adivinhou minhas medidas, minhas formas? Fui até o espelho. A imagem que me devolveu não era a da filha de pais desesperados, nem da jovem que chorava por escolhas roubadas. Era outra mulher, intensa, perigosa. O vestido colava à minha pele como segunda camada. O decote provocava mais do que eu ousaria escolher. Mas eu não havia escolhido nada. Ele escolheu. A raiva voltou com força. Fechei as mãos em punhos e me aproximei do reflexo. — Não vou me deixar quebrar — sussurrei, encarando meus próprios olhos, como quem faz uma promessa ao espelho. O anel brilhou, o vermelho me incendiava, e pela primeira vez percebi que, se Damian queria me transformar em presa, eu seria a presa que morde de volta. Deixei o cabelo solto, caindo em ondas sobre os ombros. Passei a mão pelo tecido, e de novo o arrepio veio. O vestido parecia vivo. Parte de mim queria arrancá-lo, mas outra parte queria vê-lo reagir ao me ver vestida daquela cor. O coração acelerou. O instinto gritava algo que eu não entendia. Era como se, em algum lugar dentro de mim, uma voz antiga reconhecesse Damian, não como estranho, mas como inevitável. Neguei com a cabeça. Não podia pensar assim. Não podia ceder. A lua entrou pela janela, pintando meu corpo de prata sobre vermelho. As sombras do quarto se alongaram, e por um instante achei ouvir um eco distante, um uivo abafado. Balancei a cabeça, assustada. Impossível. Era só imaginação. Mas, no fundo, sabia que não era. O bilhete ainda estava no chão. Peguei-o e o alisei com raiva. Palavras curtas, mas que soavam como ordem: “Use isso.” — Você pode ser minha ruína, Damian… — repeti em voz baixa, encarando meu reflexo. — Mas eu serei o seu inferno. E no silêncio da noite, decidi: amanhã, quando ele me vir em vermelho, não verá apenas submissão. Verá desafio. Porque se ele quer me possuir como território, vai descobrir que esse território tem dentes. Antes de deitar, peguei o celular. A tela acendeu, mostrando mensagens antigas da minha melhor amiga, Lara. Digitei rápido, sem pensar muito: — “Minha vida virou uma prisão de luxo. Não sei se consigo respirar aqui dentro.” Apaguei a última frase e reescrevi: — “Está tudo complicado. Depois te conto.” Enviei. O celular vibrou segundos depois. Lara respondeu com um coração e um simples: — “Se cuida, estou com você.” Apertei o aparelho contra o peito. Por mais sufocada que eu estivesse, ainda tinha alguém do meu lado. Talvez fosse pouco diante da muralha que Damian ergueu ao meu redor, mas, naquela noite, era o suficiente para me manter inteira. Deixei o celular na mesa de cabeceira e me enrolei no lençol, mas o sono não veio. Fechei os olhos e ainda vi o reflexo do vestido vermelho me encarando no espelho. O bilhete de Damian ecoava como uma ordem dentro da cabeça. Suspirei, virando para o lado, e sussurrei para o escuro: — Não importa o que ele pense, amanhã ainda serei eu. O silêncio respondeu, pesado, e a lua filtrada pela cortina pareceu rir da minha promessa.