TRÊS DIAS ANTES
A Promessa Antiga O carro deslizou pelos portões do casarão com o mesmo ruído de uma porta que se fecha sobre o passado. Gemima observou pela janela o jardim que pouco conhecia, as fontes que pareciam mudas diante do reencontro. Fazia dez anos que deixou aquele lugar, seus pais a colocaram em uma escola de freiras na Suiça desde os dez anos, disseram que ela estudaria em um colégio interno “para seu próprio bem” lá ela aprenderia a ser uma dama. Agora, aos vinte e um anos, voltava acreditando que enfim teria uma casa — mas não imaginava que voltava apenas para perder a liberdade. O pai a esperava na sala, de terno impecável, a expressão carregada de uma gravidade antiga. Ao lado dele, a madrasta, Ofélia, exibia o mesmo sorriso educado de sempre — o tipo de sorriso que não alcança os olhos. — Gemima — disse o pai, erguendo-se. — Você já é uma mulher feita, sua educação completa, sua mãe estaria orgulhosa se estivesse aqui. Ela tentou sorrir, mas sentiu o ar preso na garganta. — Obrigada, papai lamento que ela não viveu para ver o sonho dela se realizar. Imaginei que o senhor quisesse me ver, e estivesse com saudades e conversar, talvez?— ela hesitou. — Senti saudades de casa e do Senhor. O homem sentou-se novamente, e pousou uma pasta de couro sobre a mesa. — Pedi que a trouxessem porque há um assunto importante a tratar. — abriu a pasta, retirando um documento amarelado. — Quando você nasceu, sua mãe e eu firmamos um acordo com uma família muito estimada, os Villach. Gemima franziu o cenho. — Um acordo? — Sim,— respondeu com naturalidade, como quem anuncia um jantar. — Um contrato de união de famílias. Foi decidido que, ao completar vinte e um anos, você se casaria com o filho mais velho deles, é a garantia, e fusão das empresas e segurança dos nossos muitos negócios. Ela o olhou como se as palavras tivessem vindo de um idioma estrangeiro. — Quer dizer que, o senhor mandou me buscar no colégio porque devo casar? — Você já cumpriu o tempo estabelecido, — ele cruzou as mãos. — No contrato, sua mãe pediu que ficasse no colégio interno até atingir a idade, para ser tornar mulher instruída e equilibrada. Agora é a hora de cumprir o restante do acordo. Gemima se manteve imóvel, tentando compreender. — Mas, papai, não conheci nada da vida, nunca vivi fora de muro.— ela baixou o olhar. — Nem conheço o homem que vou casar. O pai suspirou, impaciente. — Amanhã à noite você o conhecerá, haverá um jantar de noivado, antes da cerimônia, tudo já foi providenciado. — E a roupa? — perguntou num fio de voz. — Já está em seu closet, escolhido por Ofélia. — ele respondeu sem emoção. — Você só precisa se vestir e comparecer. As palavras doíam mais que um castigo. Gemima sentiu o peito apertar, mas manteve o rosto sereno. — Sim , papai , como o Sr. desejar. Ela subiu as escadas lentamente, o coração pesava como pedra. O quarto estava do mesmo jeito que deixara anos atrás — o espelho coberto por uma cortina fina de poeira, a cama arrumada, as cortinas abertas para um céu sem cor. Fechou a porta e encostou-se nela, os olhos marejados. — Nunca tive o amor do meu pai — sussurrou, e a voz quebrou. — Mamãe ainda me dava um pouco de carinho, mesmo distante, mas ele nunca me viu como filha, sou apenas a herdeira. As lágrimas caíram silenciosas. — Me colocaram no colégio, e pouco tempo depois que mamãe morreu, ele se casou novamente. Acreditei que, ao voltar, iria ter uma vida comum, e uma chance — ela riu fraco, entre soluços. — Mas estão me prendendo outra vez, agora com um casamento. Caiu de joelhos, o rosto entre as mãos, e chorou até não aguentar. O PESO DO CONTRATO Três dias antes da chegada de Gemima, na mansão dos Villach já estava mergulhada em tensão. Na biblioteca, o senhor Edgar Villach folheava um maço de documentos antigos — papéis amarelados, carimbados e selados com o brasão da família , o mesmo nome que agora voltava para assombrar a nova geração. Do lado de fora, o sol do fim da tarde filtrava-se pelas cortinas pesadas, riscando o chão com feixes dourados. O silêncio só foi rompido quando Jano entrou, com as mãos nos bolsos, a expressão impaciente. — O senhor mandou me chamar, pai? Edgar levantou o olhar, a voz firme como quem está prestes a dar uma ordem que não admite réplica. — Sim, Jano, — apontou para uma das poltronas. — sente-se, precisamos conversar sobre o contrato. Jano se encostou no encosto, sem esconder o desconforto. — Pelo tom, não parece uma conversa agradável. — A sua noiva está chegando. — Edgar foi direto. — Em três dias, você vai se casar, ela chegará do colégio interno. O silêncio que se seguiu foi cortante. Jano piscou, como se tivesse ouvido uma blasfêmia.— O quê? Vocês assinaram esse contrato há vinte e um anos papai! A mãe, Helena, estava sentada perto da janela, para não encarar o filho. — A Leana Gemima Belgrave Godwin — disse ela suavemente. — A moça com quem seu casamento foi prometido desde o nascimento dela. — Prometido? — Jano riu, incrédulo. — Vocês estão brincando comigo? Isso foi há mais de vinte anos! O pai fechou o documento e o empurrou na direção dele. — Não é brincadeira, é um contrato. Foi assinado pelo seu avô e pelo pai dela, depois ratificado por mim e pela mãe dela. As famílias selaram um acordo: quando a menina completasse vinte e um anos, o casamento seria realizado. Jano se levantou, o rosto endurecido. — Eu já falei que eu não vou me casar, primeiro, porque nós não precisamos disso, não sei por que vocês mantiveram esse acordo. Segundo, tenho trinta e quatro anos, pai, essa menina — ele gesticulou, indignado — está saindo de um convento! Ela não conhece nada da vida, vai sair direto de trás dos muros para o altar, Isso é uma crueldade! — Jano, entenda meu filho, são tradições antigas de família. — Pois então deixem o passado no passado! — cortou ele. — Vocês não podem simplesmente decidir quem eu vou casar porque alguém há duas décadas achou que era um bom negócio! O pai se levantou também, imponente. — Você vai cumprir, Jano! O contrato foi feito no seu nome, quando a menina nasceu, você tinha treze anos, você foi o escolhido. — Justamente! — retrucou, batendo com a mão na mesa. — Nem eu que tinha treze anos, assinei! Olha a diferença de idade, olhe o absurdo disso! Edgar o encarou com frieza. — Absurdo é quebrar um acordo de honra entre famílias. Se cancelarmos esse contrato agora, perdemos milhões. — E daí? Quem assinou foram vocês, não nós.— Jano abriu os braços. — Nós temos dinheiro de sobra! O que vocês querem, mais poder e controle, é o quê vocês desejam pai? Um casamento ou uma fusão empresarial? Helena baixou os olhos, a voz quase em um sussurro: — É as duas coisas, meu filho. Jano respirou fundo, passando a mão pelos cabelos. — Isso é ridículo, é medieval esse contrato! Foi quando a porta se abriu. Juno, o irmão mais novo, entrou sem bater, ouvindo as últimas palavras. — O que está acontecendo? O pai se virou para ele, já exasperado. — Você chegou em boa hora, seu irmão decidiu que não vai se casar. — Casar, com quem papai? — Juno franziu o cenho. — Com a filha da família Goldwyn — Mas se ele não cumprir o contrato, alguém terá que fazê-lo. O olhar de Edgar recaiu sobre o filho mais novo, e Jano entendeu a insinuação antes mesmo que fosse dita. — Ah, não! — exclamou, descrente. — Não ouse pensar nisso, pai! Mas Edgar já havia decidido. — Então será você, Juno. Juno deu um passo para trás. — Eu?! Não!!! Vocês sabem que namoro a Luna, vou pedi-la em casamento, pai. — Luna é filha da sua madrasta de Gemima, Juno. Isso nunca seria bem visto. — o pai rebateu, ríspido. — Além disso, é um relacionamento recente. — Não é recente! — Juno defendeu, a voz trêmula. — Nós estamos juntos há anos! Helena tentou intervir, aflita. — Edgar, por favor! Mas ele ergueu a mão, cortando-a. — Você vai cumprir o contrato, Juno. Vai casar com a Gemima , vai ser apenas por dois anos. Depois, você pede o divórcio. Juno o olhou, incrédulo. — Dois anos? É assim que o senhor fala de um casamento? “Apenas por dois anos”? Pai é imoral, não é uma negociação, vocês estão jogando com vidas de pessoas! O pai perdeu a paciência. — Conversa com a sua namorada e explica, é só cumprir o acordo, você não precisa ser fiel. Apenas mantenha as aparências. Juno ficou imóvel, com o rosto pálido. Jano o olhou com desprezo, mas também com um toque de compaixão. — Você vai mesmo aceitar isso? Vai jogar a Luna debaixo do carro e se casar com uma desconhecida porque o papai mandou? O irmão mais novo desviou o olhar, aflito. — Sinceramente não sei o que fazer. Edgar bateu com a palma na mesa. — O que você vai fazer é obedecer, o casamento acontecerá em três dias. O silêncio que se seguiu foi sepulcral. Jano cruzou os braços, exalando raiva e impotência. — Pois saibam que, se isso der errado — disse, entre dentes —, a culpa será de vocês. E saiu da sala, deixando para trás o som do relógio marcando o tempo — o mesmo tempo que corria, impiedoso, até o dia em que Gemima, sem saber, seria entregue como herança viva de um contrato que jamais pediu para assinar. O ESTOPIM A raiva era tanta que as mãos tremiam, Fui até a cômoda do meu quarto, peguei na gaveta peguei a tesoura, e comecei a picotar a saia do meu vestido. O olhar do meu pai se ficou em mim, não parei de cortar. A lâmina brilhou à luz do abajur quando rasguei o vestido de noiva de cima a baixo. O som do tecido rasgando ecoou como um grito contido durante anos. — Vocês me trancaram em um convento! — — Nunca tive o direito de escolha, minha vida se resumiu a nada! E agora para quê um maldito contrato se cumpra, eu fui entregue como você mesmo disse ao Juno.” ESTÁ ENTREGUE” Cortei mais um pedaço, a renda joguei nno chão como neve suja. — Eu não conheço nada da vida, papai, nada! E o pouco que vi, hoje me destruiu. Vi que a única pessoa que talvez se importasse um pouco comigo não está mais aqui. Percebi que o homem que me colocou no mundo me usou. Por que não colocou a filha da Ofélia, a Luna seria a pessoa apropriada? Meu pai respirou fundo, empalidecendo. As mãos dele apertaram-se uma na outra. — Porque ela não é minha filha, e o contrato era para ser você.— murmurou, como quem engole pedras — E o contrato foi feito entre mim, sua mãe e os pais dele. Não era para Juno se casar com você, o Jano foi o escolhido. Jano recusou, disse que você era muito nova, uma criança, que precisava viver mais. Então os pais dele o substituíram pelo Juno. A tesoura caiu da minha mão, senti um frio na espinha. — Quer dizer que é assim, não fui aceita pelos dois irmãos, nem um me queria? Um me rejeitou por achar que eu era uma criança; o outro se casou para receber o dinheiro, transformando a namorada em amante. Ah, papai, é muita humilhação. Empurrei-o com o ombro, abrindo espaço para que saísse do quarto. — Agora por favor saia, quero me trocar. Fechei a porta e, no banheiro chorei , como nunca, a última vez que sofri assim foi com a morte de mais nga mãe, tomei um banho, lavei todo o meu corpo e cabelos e tirei a maquiagem com água e sabonete, tentando lavar o gosto de veneno que grudou à minha pele. Soltei meus cabelos pretos e longos da toalha, penteei, vesti um vestido simples e preto, sim preto, estou de luto. Desci as escadas devagar, com meus os olhos inchados de chorar, chamei Janice a única empregada de minha confiança e pedi. — Janice, peça ao meu pai que venha até o escritório por favor? E que ele traga com ele os pais de Juno e o advogado e juiz de paz. Estarei esperando na biblioteca. Ela apenas assentiu e saiu para cumprir o recado. Caminhei até o escritório e me acomodei em uma das poltronas, respirei fundo tentando me acalmar, e determinada a manter a serenidade. Pouco depois, ouvi passos no corredor e a porta se abriu, papai entrou, e ao lado dele, como sempre, estava Ofélia. Atrás vieram os pais de Juno e Juno e surpreendentemente o Jano. O juiz de paz e o advogado os acompanhavam, visivelmente constrangidos com a situação. Assim que Ofélia tentou se acomodar em uma das cadeiras, ergui o olhar para ela e falei em tom controlado: — A senhora poderia, por gentileza, se retirar? Este assunto não diz respeito à senhora. Ela franziu o cenho e respondeu com firmeza: — Eu sou família, Gemima. Tenho direito de estar aqui. Olhei diretamente em seus olhos, sem tremer: — Não, a senhora não é minha família, não faz parte deste contrato, não fez parte da decisão, nem das escolhas que me trouxeram a este vexame. A senhora é família da sua filha, da Luna — a namorada de Juno. É nisso que a senhora deveria se concentrar. Porque foi a sua filha que aceitou ser cúmplice de tudo isso. Ofélia ergueu o queixo, indignada, eu não desviei o olhar. — A senhora não está aqui por preocupação comigo, dona Ofélia, é só por curiosidade, creio que eu já fui humilhada o bastante para aceitar mais essa afronta. Por favor, retire-se. Meu pai interveio, a voz cansada: — Ofélia, saia, não torne a situação mais pesada do que está. Ela bateu a porta ao sair, o silêncio que se seguiu Respirei fundo e voltei-me para meu pai: — Agora, eu quero saber onde está esse contrato. Ele abaixou os olhos. — Está no cofre. — Pois então, traga-o papai. — Minha voz soou trêmula. — Eu nunca vi esse contrato. Só soube da existência dele há dois dias, quando o senhor me disse que teria que me casar. Quero que o advogado leia em voz alta. Quero entender as cláusulas, tudo o que foi assinado sobre a minha vida sem que eu fosse consultada. Olhei de relance para Juno, que parecia menor do que nunca. — Papai, o senhor me entregou a um homem que não me conhecia, que já estava comprometido com outra. E o senhor sabia disso, o senhor sabia que ele namorava sua enteada. Minha voz embargou, mas não cedi. — A situação de hoje me deixou em choque, sim, e eu armei um escândalo. Mas me diga: como eu poderia suportar calada? Eu não tenho mais rosto para sair à rua. E acredito que nem o próprio Juno, pela vergonha em que se meteu, tenha coragem de se olhar no espelho. Voltei-me diretamente para ele: — Juno, eu lamento o constrangimento que causei, mas convenhamos: nós não temos a menor condição de manter esse casamento. Você gosta de outra pessoa, não é justo comigo, não é justo com a Luna, e não é justo com você. Bastava ter dito não, e ter se recusado. Ele abaixou a cabeça, e eu continuei, sentindo o peso do que dizia: — No dia do nosso casamento, você escolheu me trair. Não apenas como mulher, mas como pessoa. Você teria dividido sua vida entre duas, e eu seria enganada. E quando eu descobrisse? Como ficaria a minha dignidade? Olhei de volta para meu pai, firme, apesar da dor: — Vocês não pensaram em nada disso. Pensaram apenas no contrato. E o senhor, papai, disse para mim que não casou a Luna com o Juno porque ela não era sua filha. Mas e o Jano, ele se recusou, o Juno foi colocado em seu lugar. Se era só uma questão de “substituir irmãos”, o senhor poderia ter encontrado outro caminho. O senhor poderia, ao menos, ter assumido a enteada como filha e colocado-a nesse lugar.